8.1.04

As poucas e boas de Lampedusa

Pena que Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa (1896-1957), tenha escrito tão pouco. De seu único romance, "O Leopardo", diz o clichê que se trata de um grande livro do século 19 escrito no século 20. A técnica narrativa supostamente anacrônica é, contudo, perfeita: afinal, a história que se conta é a de uma nobreza siciliana precisamente no rumo do seu anacronismo. E é isso que torna a obra singularmente moderna. Melhor: não há nenhum traço de pitoresco ou mau folclore no modo como Lampedusa trata a Sicília, e seus personagens conseguem funcionar como símbolos das classes a que pertencem sem deixar de ser "redondos", complexos. E como o ragazzo escrevia bem.

Só que, tirante "O Leopardo", sobra pouquíssima coisa. O que sobra foi compilado num pequeno volume, lançado faz pouco no Brasil pela editora Berlendis & Vertecchia ("Os Contos"). Mesmo o título da obra é inexato: o primeiro "conto" é, na verdade, um longo esboço do que viria a ser o romance. Mas o melhor deles, "A Sereia", tem uma abertura que me faz arder de inveja por não tê-la escrito e um desenrolar surpreendente. Não resisto a reproduzir os parágrafos iniciais aqui (a tradução é de Loredana Caprara).

"No fim do outono daquele ano de 1938 encontrava-me em plena misantropia. Eu morava em Turim e a garota número 1, revistando nos meus bolsos enquanto eu dormia, à procura de algumas notas de cinqüenta liras, tinha encontrado também uma cartinha da garota número 2 que, apesar das incorreções ortográficas, não deixava dúvidas a respeito das nossas relações.

Acordei imediata e borrascosamente. O pequeno apartamento de via Peyron ressoou de escandescências vernáculas; para arrancar-me os olhos a querida moça fez uma tentativa que evitei somente lhe torcendo um pouco o pulso esquerdo. A ação de defesa, totalmente justificada, pôs fim à gritaria e ao idílio. Ela se vestiu depressa, colocou na bolsa pó-de-arroz, batom, lencinho e a nota de cinqüenta, causa mali tanti, gritou na minha cara um tríplice pourcoun! e foi-se embora. Nunca havia sido tão linda quanto naqueles quinze minutos de fúria. Da janela vi-a sair e afastar-se na neblina da manhã, alta, esbelta, em sua reconquistada elegância.

Nunca mais a vi, como nunca vi o pulôver de cachemire preto que custara uma nota e que tinha a funesta vantagem de poder ser usado por homens e mulheres. Ela só deixou, na cama, dois pequenos grampos torcidos, ditos 'invisíveis'.

Na mesma tarde eu tinha marcado um encontro com a número 2, numa doceria da piazza Carlo Felice. Na mesinha redonda no canto oeste da segunda sala, que era a 'nossa', não vi a cabeleira castanha da moça agora tão desejada, mas a cara esperta de Tonino, um irmão dela de doze anos, que acabara de engolir um chocolate com chantilly. Ao aproximar-me, levantou-se com a habitual gentileza turinesa. 'Monsú', disse, 'a Pinotta não vai vir; ela mandou lhe entregar este bilhete. Cerea, monsú'. E saiu levando duas brioches que haviam sobrado. Pelo cartão cor de marfim, eu era avisado da despedida definitiva, motivado por minha infâmia e 'desonestidade meridional'. Claro, a número 1 havia encontrado e instigado a número 2, e eu tinha ficado com um pé em cada canoa.

Em doze horas perdi duas moças utilmente complementares entre si, mais um pulôver de que gostava; e também paguei as consumações do infernal Tonino. Minha sicilianíssima auto-estima foi humilhada, eu fui menosprezado. Decidi, por algum tempo, abandonar o mundo e suas pompas." (Leiam, vale a pena.)