20.10.04

Conversas comigo mesmo (1)

Eu tinha 16 ou 17 anos quando decidi começar a ler Baudelaire. Comprei nessa época a tradução das "Flores do Mal" feita pelo Ivan Junqueira, cuja capa trazia a clássica foto do poeta, com cara de pouquíssimos amigos, feita por Étienne Carjat. Entendo por que a Nova Fronteira trocou a capa nas edições subseqüentes. Embora já gostasse de poesia, tive de me esforçar para ler o livro até o fim; os temas eram legais (que adolescente fã de Augusto dos Anjos não apreciaria um poema como "Uma Carniça"?), mas o estilo de Baudelaire me parecia solene, pomposo, às vezes até arrastado.

Claro, não era o estilo de Baudelaire, e sim o de Ivan Junqueira. Eu não sabia quase nada de francês quando li as "Flores" pela primeira vez; comecei a aprender a língua pouco depois. Quando me vi capaz de encarar as "Fleurs" no idioma original, percebi que Baudelaire era um cara incapaz de escrever um verso ruim (aqui, o fantasma de Manuel Bandeira sussurra no meu ouvido que há poemas perfeitos, não poetas perfeitos. Está certo; ele mesmo o prova). Mais: notei que, no poète maudit, com todo o rigor que lhe era característico, muitos dos melhores versos eram os de sintaxe mais simples, os mais naturalmente fluentes -quase coloquiais.

Junqueira deve ter pensado algo como "não, isto é Baudelaire, bardo coberto de glórias; vou vestir meus punhos de renda para traduzir". O resultado foi dar uma parnasianizada no poeta, que ficou, na tradução, mais parecido com Gautier ou Leconte de Lisle do que consigo mesmo. (Resenha publicada pela "Veja" há pouco informa que Junqueira fez coisa parecida em suas versões de T.S. Eliot.) Dois exemplos colhidos a esmo: "ma pauvre muse, hélas! qu'as-tu donc ce matin?" vira "que tens esta manhã, ó musa de ar magoado?", e "tu réclamais le Soir; il descend; le voici" se transforma em "reclamavas a tarde; eis que ela vem descendo".

Sei que, em português, é difícil alexandrinos soarem tão naturais quanto decassílabos. Também sei que traduzir poesia é ainda mais difícil e não quero ser injusto. Mas o exemplo me fez entender que, se o poeta é bom, mesmo a melhor tradução será uma nota de pé de página (excepcionalmente esclarecedora e, às vezes, até bonita) do original. "Oscilação permanente entre o som e o sentido", dizia Valéry da linguagem poética. O sentido é fácil contrabandear, mas os sons insistem em ficar do outro lado da fronteira. Hélas.