Ray Davies e o futuro do pretérito
Soa filisteu se eu disser que os Kinks tornaram mais claras para mim duas ou três coisas sobre arte? Claro que sim. Sobretudo aqui no Bananão, terra de samba e pandeiro, onde lorpas e pascácios ensinam que Baiano Meloso é poeta e asseguram que blogue é algo relevante (amiguinho blogueiro, se você pensa assim, acredite: não é. Os melhores blogues são deliciosamente irrelevantes; os mais sérios podem, no máximo, apontar -e apontam- para o que é relevante. Sempre há, porém, aqueles que ficam olhando para o dedo). Não estou dizendo que Ray Davies, principal e quase-único compositor da banda, seja Wordsworth; fui alfabetizado, percebo a diferença. Mas, se nos restringirmos ao pequeno mundo que é o roque, ele tem méritos suficientes para ser poet laureate, na definição do velho-quebrador-de-guitarra Pete Townshend.
As melhores letras de Ray Davies são, sem dúvida, witty. É um dos pouquíssimos roqueiros que poderia usar o chapéu de Noël Coward sem grande desconforto. Mas é raro que, nelas, um verso brilhe por si só, destacado do resto -menos "poeta" do que "contista", quem sabe. O que Davies faz bem, entre outras coisas, é explorar a diferença entre a coisa dita, o modo como é dita e mesmo o contexto em que ela é enunciada (ironia, direis; certo, mas não só). Ele pertence, portanto, ao time dos compositores que precisam, de fato, ser ouvidos: quem só lê as coisas ditas perde pelo menos metade da história, não raro a melhor metade.
Pegue "Supersonic Rocket Ship", faixa do álbum "Everybody's in Show Biz", de 1972. Você, leitor esperto, sabe que naquela época o Grande Tédio de Existir ainda não estendera sua sombra às viagens espaciais, então tema recorrente dessa contradição-em-termos que é a "cultura pop". Àquela altura, um David Bowie, por exemplo, devia todos os seus sucessos a space oddities, alienígenas e que tais. Havia nisso uma idéia de modernidade -faute de mieux- que parecia combinar com a imagem de si mesmo que o roquenrol se empenha em vender. Sem ouvi-la e a julgar pelo título, era lícito pensar que "Supersonic Rocket Ship" fosse uma música agressiva, "moderna", talvez com barulhinho de foguetes em decolagem.
Em vez disso, Davies fez seus ouvintes aterrissarem nos anos 30. A canção soa como peça extraviada de um vaudeville, e ele canta com um certo sotaque cockney, zombeteiro. É como o mestre-de-cerimônias de um circo ou um camelô cuja barraquinha oferecesse viagens espaciais a preços módicos. Quem o ouve não pensa na nave de Armstrong e Aldrin, mas num dos engenhos, ainda mais antigos, daquele filme de Georges Méliès. Falso, portanto: deliberadamente anacrônico, incapaz de levar alguém além dos subúrbios de Londres, quanto mais ao espaço. Fantástico no sentido etimológico do termo, de inexistente ou irrealizável.
E, ora, não é mais interessante se deixar enganar? A viagem de foguete proposta pelo camelô contém todas as possibilidades. Não precisa prestar contas à realidade, à aridez do pouso verdadeiro na Lua, à mediocridade da geopolítica, à sem-gracice absoluta daquelas pedrinhas repletas de interesse científico. A viagem espacial de "Supersonic Rocket Ship", de volta para o passado e esvaziada de "verdade", é atraente porque é impossível. Quem olha com cuidado esse pequeno espelho vê o que se deve esperar da grande arte: mentiras bem contadas, moeda falsa mais valiosa -capaz de adquirir mais e melhores bens- do que a verdadeira. Serei sempre grato a mr. Davies por não me deixar esquecer disso.
(Para ouvir a música, clique na nota aí embaixo.)
As melhores letras de Ray Davies são, sem dúvida, witty. É um dos pouquíssimos roqueiros que poderia usar o chapéu de Noël Coward sem grande desconforto. Mas é raro que, nelas, um verso brilhe por si só, destacado do resto -menos "poeta" do que "contista", quem sabe. O que Davies faz bem, entre outras coisas, é explorar a diferença entre a coisa dita, o modo como é dita e mesmo o contexto em que ela é enunciada (ironia, direis; certo, mas não só). Ele pertence, portanto, ao time dos compositores que precisam, de fato, ser ouvidos: quem só lê as coisas ditas perde pelo menos metade da história, não raro a melhor metade.
Pegue "Supersonic Rocket Ship", faixa do álbum "Everybody's in Show Biz", de 1972. Você, leitor esperto, sabe que naquela época o Grande Tédio de Existir ainda não estendera sua sombra às viagens espaciais, então tema recorrente dessa contradição-em-termos que é a "cultura pop". Àquela altura, um David Bowie, por exemplo, devia todos os seus sucessos a space oddities, alienígenas e que tais. Havia nisso uma idéia de modernidade -faute de mieux- que parecia combinar com a imagem de si mesmo que o roquenrol se empenha em vender. Sem ouvi-la e a julgar pelo título, era lícito pensar que "Supersonic Rocket Ship" fosse uma música agressiva, "moderna", talvez com barulhinho de foguetes em decolagem.
Em vez disso, Davies fez seus ouvintes aterrissarem nos anos 30. A canção soa como peça extraviada de um vaudeville, e ele canta com um certo sotaque cockney, zombeteiro. É como o mestre-de-cerimônias de um circo ou um camelô cuja barraquinha oferecesse viagens espaciais a preços módicos. Quem o ouve não pensa na nave de Armstrong e Aldrin, mas num dos engenhos, ainda mais antigos, daquele filme de Georges Méliès. Falso, portanto: deliberadamente anacrônico, incapaz de levar alguém além dos subúrbios de Londres, quanto mais ao espaço. Fantástico no sentido etimológico do termo, de inexistente ou irrealizável.
E, ora, não é mais interessante se deixar enganar? A viagem de foguete proposta pelo camelô contém todas as possibilidades. Não precisa prestar contas à realidade, à aridez do pouso verdadeiro na Lua, à mediocridade da geopolítica, à sem-gracice absoluta daquelas pedrinhas repletas de interesse científico. A viagem espacial de "Supersonic Rocket Ship", de volta para o passado e esvaziada de "verdade", é atraente porque é impossível. Quem olha com cuidado esse pequeno espelho vê o que se deve esperar da grande arte: mentiras bem contadas, moeda falsa mais valiosa -capaz de adquirir mais e melhores bens- do que a verdadeira. Serei sempre grato a mr. Davies por não me deixar esquecer disso.
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