PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL 29
F'rnando P'ssoa (1888-1935)
“Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas –intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas –a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem –lá entre eles, exclusos todos nós outros- os grandes segredos que são os caboucos do mundo.
Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações colectivas.
O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demónios de ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?
Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostara, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele. (...)”
(Sem tempo para escrever, só me resta engordar a antologia. Esse é o fragmento 256 do "Livro do Desassossego", do heterônimo Bernardo Soares. Ainda mais interessante se lembrarmos que Pessoa, poeta "estranho" e incapaz de escrever como os outros, era versado nos "mestres e sabedores do invisível".)
F'rnando P'ssoa (1888-1935)
“Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas –intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas –a pretensão, que têm certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem –lá entre eles, exclusos todos nós outros- os grandes segredos que são os caboucos do mundo.
Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguém o julgue assim. Por que não estará essa gente toda doida, ou iludida? Por serem vários? Mas há alucinações colectivas.
O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível, é que, quando escrevem para nos contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demónios de ser mais fácil que o comércio com a gramática? Quem, através de longos exercícios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astrais, por que não pode, com menor dispêndio de uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dogma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever, já não digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois no próprio abstruso as pode haver? Por que há-de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não há-de sobrar um reles bocado com que se estude a cor e o ritmo da linguagem dos homens?
Desconfio dos mestres que o não podem ser primários. São para mim como aqueles poetas estranhos que são incapazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estranhos; gostara, porém, que me provassem que o são por superioridade ao normal e não por impotência dele. (...)”
(Sem tempo para escrever, só me resta engordar a antologia. Esse é o fragmento 256 do "Livro do Desassossego", do heterônimo Bernardo Soares. Ainda mais interessante se lembrarmos que Pessoa, poeta "estranho" e incapaz de escrever como os outros, era versado nos "mestres e sabedores do invisível".)
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