22.7.04

Exercícios de estilo (1)

Tenho tido pouco tempo para escrever, mas quero começar uma brincadeira inspirada pelo francês doidjão Raymond Queneau. Como vocês devem saber, Queneau foi fundador do Oulipo -Ouvroir de Littérature Potentielle, grupo de escritores que incluía Italo Calvino e Georges Perec- e é o autor de "Exercícios de Estilo", livro em que um mesmo fato é narrado de 99 maneiras diferentes. Não tenho fôlego para escrever 99 posts (bronquite, sabe como é), mas acho que dá para fazer alguns à la manière de... interessantes.

O enredo básico atende a uma reivindicação do meu caro Alexandre -que se queixa, com justiça, de uma "ditadura das coisas desinteressantes ditas interessantemente". Por isso, escolhi o ponto de partida mais interessante que pude conceber: a história do cachorrinho que tinha três pernas, foi mijar e caiu. Vejam a seguir alguns modos de contar esse acontecimento épico.

* Thomas Bernhard

"Eu estava cansado de ver aquelas caras idiotas, aquele povo imbecil com seu ar soberbamente idiota, aqueles vienenses enfatuados e idiotas enquanto estava recostado ao muro, pensava 'como podem os habitantes de um país ser tão congenitamente, tão irremediavelmente idiotas, é repulsivo', enquanto recostado ao muro observava o grotesco espetáculo de um cão nojento cheio de feridas, com uma perna a menos, mancando em direção a um poste idiota, idiota como cada centímetro quadrado de Viena, eu pensava recostado ao muro 'esse cão sem perna é igual aos vienenses, todos são cérebros com uma pata a menos, todos encostam-se no poste para urinar e caem, e rolam no próprio mijo, esses vienenses tão estúpidos, sarnentos e idiotas', pensava enquanto estava recostado ao muro e o cão tentava urinar e caía."

* Clarice Lispector (para a Colorina)

"Eu era uma cadela de três pernas. E não era. Melhor: eu me era sendo, obliquamente, desequilibradamente. Me era, vista de fora -com a dolorosa consciência da perna faltante, mas indiferente. E vista de dentro, espessa, sem compreender, sem nem ao menos tentar. E era também uma perna que perdeu a cadela. E era o poste, a cadela, a ausência da perna. Tudo se me era assim- tão imóvel, tão docemente sem sentido, tão perna. E eu me era sendo, vendo o líqüido luminoso e amarelado, orelha abrupta colada ao chão. E a urina se me era, e eu não sei o que digo, e então adoro."

* Dalton Trevisan

"Sarnento, aquele cão. Tinha três pernas. Foi mijar. Caiu."