6.5.05

Seven brides for seven brothers

Não costumo entrar nessas brincadeiras internéticas do tipo "passa o anel" (epa, opa), sobretudo quando são coisas vagamente cretinas como aquilo de abrir um livro na página 23,5 -ou sei lá qual- e transcrever no blogue a primeira frase encontrada. Também me recuso a chamá-las por aquele nome que, para o Elton, evoca imediatamente a Glória Maria. Mas esta aqui é batuta, porque me permite falar um pouco mais sobre livros; além disso, a coisa me foi repassada pelo Alexandre ("habemus Chesterton!"), que por sua vez a recebeu do Nuno Guerreiro, do blogue lusitano Rua da Judiaria. Como diria José Silvério, a bola veio mansa, pedindo "me chuta, me chuta": não posso fazer a esses dois craques a desfeita de incorporar Serginho Chulapa e dar um bico na direção das arquibancadas. Ripa na chulipa, portanto. Espero que minhas respostas casem bem com as sete perguntas literárias que seguem.

1. Não podendo sair do "Fahrenheit 451", que livro quererias ser?

Tem que ser um só? Por mim, eu seria a opera omnia do Machadão (que está na moda, o mundo aplaudiu, é um barato e um sucesso dentro e fora do Brasil). Sim, isso inclui aqueles romances da primeira fase, aqueles poemas parnasianos assim-assim, aquelas peças que ninguém lê e aquele montão de crônicas, sobretudo o artigo em que meu herói desce a ripa n'"O Primo Basílio" (o fato de que também gosto -e muito- do Eça notwithstanding). Se meu disco rígido não tiver memória suficiente, posso ser aqueles dois volumes de contos organizados pelo John Gledson para a Companhia das Letras, mais os romances de "Memórias Póstumas" em diante; forçado a escolher um só livro, é Brás Cubas na cabeça.

2. Já alguma vez ficaste perturbado/apanhado por uma personagem de ficção?

Sim, sem dúvida. Acho que o primeiro, quando eu era bem pequeno e estava começando a ler, foi a Alice do País das Maravilhas -não na tradução do livro de Lewis Carroll, mas na adaptação feita pelos estúdios Disney para o desenho animado, que ganhou uma versão em livro. Lembro que a Alice grandona, desproporcionalmente grande, era um pouco assustadora para mim. Bem mais tarde, já adulto, os personagens que mais me impressionaram foram basicamente dramatúrgicos. Menciono dois deles por razões quase opostas: a Antígona do Sófocles - com tudo o que a personagem diz sobre nobreza, honra, sacrifício- e, na vasta galeria dos shakespearianos, sir John Falstaff, aquele bufão que no fundo é também nobre, generoso. Próximo de nós, mas muito maior que nós, larger than life -e que triste é a cena de sua rejeição pelo príncipe Hal, depois rei Henrique V, no final de "Henrique IV". Dos mais modernos, cito a Joana D'Arc do Shaw, a um só tempo ingênua, irônica, insolente e obstinada (hum, essa frase merece um "ai, Creuza"); e Thomas Stockmann, o "inimigo do povo" de Ibsen. Nunca engoli o final dessa peça, forçadamente otimista: mas o "homem que mais pode porque está mais só" é, para mim, uma idéia fundamental que funciona como personagem.

3. O último livro que compraste?

Foram dois: "O Homem e a Gente", do Ortega y Gasset, e os "Collected Shorter Poems, 1927-1957", do Auden.

4. Os últimos livros que leste?

Bom, convém dizer, como preâmbulo, que minhas leituras são bastante caóticas: vários livros ao mesmo tempo, uns lidos ou relidos, outros apenas começados, alguns quase-terminados. Começo a lista com releituras: por ocasião da morte de Saul Bellow, revi o romance "Mr. Sammler's Planet" e muitos dos ensaios de "Tudo Faz Sentido" (até onde sei, há edição brasileira apenas do segundo). Bellow era muito bom, como ficcionista e como ensaísta. E reli "O Castelo de Axel", do Edmund Wilson, que ficou muito tempo fora de catálogo e foi relançado no ano passado ou neste. Fora esses, uma compilação de entrevistas de Vladimir Nabokov, "Strong Opinions"; a capa da minha edição é horrenda, mas o conteúdo compensa, porque Nabokov era sempre um ótimo entrevistado. "On the Pleasure of Hating", pequena coletânea de artigos do William Hazlitt. Três peças do Noël Coward num só volume, "Blithe Spirit", "Hay Fever" e "Private Lives" (gosto mais da primeira). "A Descoberta do Outro", do Gustavo Corção (menos interessante quando ele se põe a pregar, bem mais quando exercita aquele humor machadiano). "Poetas Franceses da Renascença", breve antologia traduzida por Mário Laranjeira e publicada numa coleção de clássicos da Martins Fontes. "Parte Alguma", o novo volume de poesias do Nelson Ascher. E a edição brasileira das poesias do T.S. Eliot, na péssima tradução daquele senhor que é presidente da ABL. Ah! Mais dois de leitura leve-e-agradável: "A Vida como Performance", perfis feitos pelo crítico teatral tarado Kenneth Tynan (a babação às vezes incomoda, mas há muita coisa boa, sobretudo o longo perfil de Louise Brooks), e a compilação das críticas do cinéfilo Moniz Vianna, "Um Filme por Dia". A última é ainda melhor se você tiver ao lado uma coleção de DVDs.

5. Que livros estás a ler?

Além dos que eu acabei de comprar (vide item 3) e da mesma maneira caótica: "Os Prazeres e os Dias", do Proust. Uma coletânea de contos do Maupassant (não essa tradução recém-lançada, mas uma mais antiga, feita pelo Mário Quintana). "The Secret Agent", do Joseph Conrad. "An Experiment in Criticism", do C. S. Lewis, indicação valiosa de Lord ASS. "Les Planches Courbes", ao que parece o livro mais recente do Yves Bonnefoy (ele nunca fez muito minha cabeça como poeta, mas esse volume é bonito). A putaria à romanesca do "Satyricon", do Petrônio, em edição bilíngüe. Uma tradução lusitana do século 19 para a "Eneida", do Virgílio. A versão do Bento Prado, o pai, para as "Odes e Epodos" do Horácio (os dois últimos livros integram a coleção da Martins Fontes a que aludi no item 4). De vez em quando, dou uma espiada nos "Doze Césares" do Suetônio, vertidos pelo Robert Graves. E leio, saltado e sem ordem, a obra completa do Jorge de Lima, em que há muita beleza: um dia vou terminar a "Invenção de Orfeu", tenho fé.

6. Que livros levarias para uma ilha deserta?

Mozart, sabiamente, diz que o melhor seria levar o manual do escoteiro-mirim. No meu caso, minha única (vaga) semelhança com são Jerônimo é a vontade de arrastar quase toda a biblioteca para o deserto -ou a ilha deserta. Sei que posso fazer 200 listas e não ficar satisfeito com nenhuma delas, mas a que me ocorre agora é a que segue: os Machados supracitados, do Brás Cubas para a frente. Alguns diálogos do Platão (restrito a um volume, ficaria com o meu que reúne o "Banquete" e a "Apologia de Sócrates"). Algumas coisas do velho Ari, sobretudo a "Poética" e a "Ética a Nicômacos". Traduções decentes da "Ilíada" e da "Odisséia" (a versão brasileira melhorzinha é a do Carlos Alberto Nunes, que deixa bastante a desejar; não se compara, por exemplo, à tradução do John Dryden para o primeiro livro da "Ilíada"). "The Complete Pelican Shakespeare", um volumão com todas as peças e poemas, mais ótimos textos introdutórios (epa, opa). A lírica do Camões. Os "Ensaios" do Montaigne, pai da matéria. Os "Pensamentos" do Pascal. Um Baudelaire que incluísse "As Flores do Mal", os "Pequenos Poemas em Prosa", a crítica de arte & literária e o bricabraque de "Mon Coeur Mis à Nu". Um Eliot no original, também com poesias e ensaios ("Notas para uma Definição de Cultura" e outros). Chesterton de montão, as histórias todas do Padre Brown e os ensaios ("Ortodoxia" etc.). Shaw também a granel, sobretudo as peças, como "Saint Joan" e aquele sublime terceiro ato de "Man and Superman", "Don Juan in Hell". Do Carpeaux, os "Ensaios Reunidos" e a "Nova História da Música". Tudo que eu puder ler de Ortega y Gasset. Todo o F'rnando P'ssoa, do sublime ao muito chato (sei lá, de repente me dá vontade de ler "Na Floresta do Alheamento"). "L'Allegria", do Ungaretti. Algumas coisas de Auden, Laforgue, Corbière, Valéry (deste, poemas e ensaios), Paul Celan. O par "Ficções" e "O Aleph", do Borges. Mais ensaios: Octavio Paz ("A Chama Dupla" e aquele sobre Sóror Juana Inés de la Cruz), Joseph Brodsky (o excepcional "Menos que Um") e a "História do Amor no Ocidente", do Denis de Rougemont. Faltaram romances, não? Os que me ocorrem: "O Leopardo", do Lampedusa, um volume com os dois do Radiguet ("Com o Diabo no Corpo" e "O Baile do Conde d'Orgel"), o "Pale Fire" do Nabokov. E quem sabe na ilha eu consiga enfim ler todo o "Ulysses", do irlandês maluco, com a ajuda do manual de instruções do Anthony Burgess ("Homem Comum Enfim"). E chega, que este deve ser o post mais longo que escrevi. (Há outra pergunta, mas a resposta é curtinha.)

7. Quatro pessoas a quem vais passar este testemunho e por quê?

Quero repassá-lo a quatro pessoas que, acredito, darão respostas interessantes e radicalmente diferentes: Sheila Leirner (Quando, Onde e Como), Pedro Sette Câmara (O Indivíduo), Marcos VP (Pirão Sem Dono) e o inimitável César Miranda (Pró Tensão), humorista cheio da Graça. A bola agora está com vocês, caros.