8.5.03

LOVE ME, LOVE MY UMBRELLA

Pois é, hoje estou a fim de ser chato ("Ah, é? Só hoje, boneca?") e vou falar de James Joyce. Aliás, não vou nem falar, que estou com preguiça: passo a palavra ao Anthony Burgess.

"Esquecida pelos consumidores no Natal, santa Luzia, santa Lucia, era celebrada no dia 13 de dezembro. Para Joyce, que durante quase a vida inteira lutou contra a doença dos olhos, essa santa tinha um significado especial, sendo a protetora da visão, e por isso deu à filha o nome de Lucia. O tema de todo esse período do ano é luz-saída-das-trevas, e é correto se rejubilar (Joyce conhecia bem a etimologia de seu nome) com a vitória da luz. Rejubilamo-nos mesmo com a morte do primeiro mártir cristão no dia seguinte ao do Natal [Estêvão] e nos lembramos da razão pela qual Joyce aparece com o nome de Stephen nos romances autobiográficos. Também ele foi mártir, embora da literatura; testemunha da luz, condenado por si mesmo ao exílio, à pobreza, ao sofrimento, à calúnia e (talvez pior que tudo) à canonização ainda em vida por um círculo restrito, a fim de que a doutrina da Palavra pudesse se difundir. Foi mártir jocoso, no entanto, etílico e irônico."

"Joyce, que admirava William Blake, tinha muito de Blake: todas as leis eram más; maldição revigora, bênção relaxa. E no entanto a rejeição de Joyce ao catolicismo estava longe de ser absoluta. A jactância dos jesuítas de que são capazes de condicionar para sempre a alma de uma criança não é infundada, e Joyce foi educado por jesuítas. Podia se recusar aos sacramentos, Matrimônio assim como a Eucaristia, mas as disciplinas e, de uma forma renegada e torturada, os próprios fundamentos da cristandade católica o acompanharam por toda a vida. (...) As primeiras palavras ditas em 'Ulysses' são as que iniciam a missa. Buck Mulligan, de roupão, segurando uma navalha e um espelho em cruz, sobe ao alto de uma torre para perpetrar a primeira blasfêmia do livro: 'Pois isto, Oh caros bem-amados, é a genuína Christina: corpo e alma e sangue e chagas.' Mas a blasfêmia pertence à personagem: o tom litúrgico pertence ao livro. Aqui, Joyce parece dizer, um ritual de significado solene, por mais cômica que seja a superfície, está para começar. E suas duas obras máximas são rituais: há uma substância escondida, uma sagaz instalação de símbolos ocultos, há mais do que os olhos vêem. (...) Por trás dos 'acidentes' de um épico cômico jaz uma substância qualitativamente diferente: num certo sentido, um sacramento está sendo administrado. (...) A relação de Joyce com o catolicismo é a do familiar amor-ódio da maioria dos renegados."

Tudo isso está em "Homem Comum Enfim", livro do Burgess publicado pela Companhia das Letras (tradução de José Antonio Arantes) e que, como eu já disse aqui, deveria ser vendido como manual de instruções para os livros do Joyce. Alguém pode dizer que Burgess, por ser católico, era suspeito, mas ele não viu nada além do que já estava na obra do irlandês maluco. Podes crer.