30.3.04

Os humoristas metafísicos

João Cabral, o Garoto Enxaqueca, volta e meia citava a influência de poetas ingleses como John Donne e Andrew Marvell sobre seu trabalho -dizia como aprendera com eles a apresentar uma metáfora, desdobrá-la, contradizê-la, recompô-la etc. Donne e Marvell ficaram conhecidos como "metafísicos" graças ao ensaísta Samuel Johnson, que não gostava nem um pouco deles. O adjetivo tinha intenções pejorativas, mas pegou mesmo entre admiradores desse tipo de poesia, como T.S. Eliot -que, num de seus ensaios, contesta a classificação, embora faça uso dela o tempo todo.

Nesse sentido, o humor brasileiro, mesmo o mais indigente, é metafísico -e é uma pena que os preconceitos da dita intelligentsia a impeçam de reconhecer isso. Basta ver, por exemplo, Chico Anysio contando aquela piada de meia hora sobre o time de futebol que tinha um meio-campista chamado Redondo e um centroavante que atendia por Cacetão: como bom humorista metafísico, ele explora todas as possibilidades dessa analogia ("o Redondo abre para o Cacetão penetrar pelo meio", "o Cacetão está caído, mas é só fazer uma massagem que ele levanta", "o juiz pôs o Cacetão para fora" e assim por diante). Outro grande exemplo de humor metafísico são as piadas maximalistas de Tiririca n'"A Praça É Nossa". Vou mais longe: o autor de "Florentina" é capaz de alterar nossa percepção espaço-temporal. As anedotas que ele conta para Carlos Alberto de Nóbrega devem ter no máximo 5 minutos, que passam como se fossem 50 -e quem as ouve tem a incômoda sensação de estar sendo espremido pelas paredes da sala.

Cheguei a pensar que, no Brasil, Chico Anysio e Tiririca deveriam ser estudados do mesmo modo que Donne e Marvell o são num país decente. Mas logo desisti da idéia. Teríamos teses de doutorado sobre "o rir no cânone chicoanysiano", análises tiririquianas à luz do conceito de desconstrução do Derrida, essas coisas. Só funcionaria se fosse implantada minha proposta de tornar obrigatória a apresentação de teses acadêmicas sob a forma de marchinhas de Carnaval. Mas ninguém me leva a sério.