19.5.05

Quando eu morrer, me enterre na latinha

Alguns leitores certamente acharão lúgubre esse negócio de ficar pensando no próprio epitáfio (nenhuma relação com "Epitáfio Peffoa", na pronúncia do Efelentífimo). Bobagem. Primeiro, por ser uma óbvia prova de que estamos vivos. Segundo, porque quem leu "O Tema dos Três Escrínios" -viram, leitores psicanalistas? Também sei citar elogiosamente o tarado da Morávia- entende como é que a coisa funciona. Nesse texto, vocês sabem, Fróide analisa aquela cena d'"O Mercador de Veneza" em que os pretendentes à mão de Pórcia, entre eles Bassânio, devem escolher entre três escrínios, de ouro, prata e chumbo; quem encontrar o retrato dela em um dos três leva a moça. (Sim, é uma genial antecipação do Programa Silvio Santos, com Pórcia no lugar da casa própria, mas não é isso o que me interessa aqui.) Bassânio escolhe o terceiro escrínio -o de chumbo- e Fróide associa essa escolha à morte. Melhor: vê na idéia dos três escrínios uma tentativa de conferir algum caráter de escolha ao que é inevitável. Coisa parecida ocorre, talvez de modo mais claro, com os epitáfios: já que não se pode optar por não morrer, que a gente possa pelo menos dar alguns palpites na decoração (Oscar Wilde nas últimas, sobre o horrendo papel de parede do quarto de hotel em que estava: "One of us has to go").

Tudo isso para dizer que, por enquanto, meus epitáfios são dois, um literário e outro musical. Posso, é claro, mudá-los; espero não precisar recorrer aos serviços de nenhum médium para isso. O primeiro é este trecho inicial de "O Aeronauta", de dona Cecília:

Agora podeis tratar-me
como quiserdes:
não sou alegre nem triste,
humilde nem orgulhoso
—não sou terrestre.


O segundo é "Lotus Blossom", de Billy "Sweet Pea" Strayhorn, que já seria um gênio da música popular de todos os tempos se tivesse composto apenas "Lush Life". Quando seu amigo e braço-direito morreu, Duke Ellington, elegantiae arbiter, gravou um ótimo disco em sua homenagem, "And His Mother Called Him Bill" , cuja edição em CD contém duas versões dessa música. Uma traz só o duque ao piano; na outra, ele é acompanhado por um baixo e pelo sax-barítono de Harry Carney. É a segunda, minha preferida, que vocês podem ouvir clicando na nota abaixo. E descansem em paz.