Traições tradutórias
Retorno a Alcofribas Nasier, extrator da quinta-essência. O francês fescenino é responsável indireto por uma das melhores demonstrações de que se deve desconfiar de toda tradução -e de que essa desconfiança não importa se a versão for boa. No Livro Primeiro de "Gargântua e Pantagruel", capítulo 25, há uma troca de insultos entre os vendedores de bolo de Lerné e os do país de Gargântua (que utilidade tem isso para a trama? Absolutamente nenhuma, é só for the fun of it. Aliás, o livro é todo assim). O original, em francês quinhentista, é o seguinte: "Les fouaciers (...) les oultragerent grandement, les appelans trop diteulx, breschedens, plaisans rousseaulx, galliers, chienlictz, averlans, limes sourdes, faictneans, friandeaulx, bustarins, talvassiers, riennevaulx, rustres, challans, hapelopins, trainneguainnes, gentilz flocquetz, copieux, landores, malotruz, dendins, baugears, tezez, gaubregeux, gogueluz, claquedans, boyers d'etrons, bergiers de merde, et aultres telz epithetes diffamatoires".
Vocês contaram? São 28 xingamentos. O bom tradutor de Rabelais para o português, provavelmente cansado das enumerações, decidiu parar no décimo-sexto: "Os vendedores (...) ultrajaram grandemente os outros, chamando-os de parlapatões, desdentados, ruços pacóvios, vagabundos, caga-na-cama, brutamontes, marotos, desordeiros beberrões, fanfarrões, vilões, patifes, ladrões, cretinos, gente sem eira nem beira, boiadeiros de bosta e pastores de merda, e outros epítetos difamatórios". Por sua vez, sir Thomas Urquhart (1611-1660), em sua versão para o inglês, preferiu aumentar por conta própria o total de impropérios. Vejam que beleza: "The bunsellers or cakemakers (...) did injure them most outrageously, calling them brattling gabblers, licorous gluttons, freckled bittors, mangy rascals, drunken roysters, sly knaves, drowsy loiterers, slapsauce fellows, slabberdegullion druggels, lubbardly louts, cozening foxes, ruffian rogues, paultry customers, sycophant-varlets, drawlatch hoydens, flouting milksops, jeering companions, staring clowns, forlorn snakes, ninny lobcocks, scurvy sneaksbies, fondling fops, base loons, saucy coxcombs, idle lusks, scoffing braggards, noddy meacocks, blockish grutnols, doddipol joltheads, jobbernol goosecaps, foolish loggerheads, flutch calf-lollies, grouthead gnat-snappers, lob-dotterels, gaping changelings, codshead loobies, woodcock slangams, ninnie-hammer fly-catchers, noddie-peak simpletons, and other suchlike defamatory epithets".
Sem dúvida a segunda tradução, exagerada e excessiva, é a melhor graças ao excesso e ao exagero, que a fazem ainda mais rabelaisiana que Rabelais; traidora da letra, mas fidelíssima ao espírito. Quanto à versão em português, os lusofalantes, sobretudo de aquém-mar, talvez argumentem que escrever dá trabalho e pensar cansa. Melhor se deixar ficar molemente no meio do caminho, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais.
Vocês contaram? São 28 xingamentos. O bom tradutor de Rabelais para o português, provavelmente cansado das enumerações, decidiu parar no décimo-sexto: "Os vendedores (...) ultrajaram grandemente os outros, chamando-os de parlapatões, desdentados, ruços pacóvios, vagabundos, caga-na-cama, brutamontes, marotos, desordeiros beberrões, fanfarrões, vilões, patifes, ladrões, cretinos, gente sem eira nem beira, boiadeiros de bosta e pastores de merda, e outros epítetos difamatórios". Por sua vez, sir Thomas Urquhart (1611-1660), em sua versão para o inglês, preferiu aumentar por conta própria o total de impropérios. Vejam que beleza: "The bunsellers or cakemakers (...) did injure them most outrageously, calling them brattling gabblers, licorous gluttons, freckled bittors, mangy rascals, drunken roysters, sly knaves, drowsy loiterers, slapsauce fellows, slabberdegullion druggels, lubbardly louts, cozening foxes, ruffian rogues, paultry customers, sycophant-varlets, drawlatch hoydens, flouting milksops, jeering companions, staring clowns, forlorn snakes, ninny lobcocks, scurvy sneaksbies, fondling fops, base loons, saucy coxcombs, idle lusks, scoffing braggards, noddy meacocks, blockish grutnols, doddipol joltheads, jobbernol goosecaps, foolish loggerheads, flutch calf-lollies, grouthead gnat-snappers, lob-dotterels, gaping changelings, codshead loobies, woodcock slangams, ninnie-hammer fly-catchers, noddie-peak simpletons, and other suchlike defamatory epithets".
Sem dúvida a segunda tradução, exagerada e excessiva, é a melhor graças ao excesso e ao exagero, que a fazem ainda mais rabelaisiana que Rabelais; traidora da letra, mas fidelíssima ao espírito. Quanto à versão em português, os lusofalantes, sobretudo de aquém-mar, talvez argumentem que escrever dá trabalho e pensar cansa. Melhor se deixar ficar molemente no meio do caminho, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais.
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