15.2.04

Notas de verão sobre impressões arenosas

Os habitantes de Piçaraguatuba-Mirim, de onde escrevo, assim como personagens de filme do K.H. Diegues, só usam papel para embrulhar pão e limpar a bunda -isto é, os mais sofisticados, que sabem o que é pão e não fazem sua higiene pessoal com pedras. A cidade é governada pelos mosquitos, que perfazem 85% da população. Há chuva, bananas, cocos e caninha Zebuceto à vontade, além de um Monumento ao Caiçara cuja feiúra, sincera e comovente, perde apenas para a do Borba Gato. Enfim, um paraíso que faria as delícias de Jean-Jacques Rousseau. Mas meu mocó também tem TV a cabo, o que me faz alternar a apreciação da beleza rústica e lamacenta de Piçaraguatuba com cantoras turcas hipermaquiadas, o noticiário da TV estatal chinesa e, no canal da "National Geographic", barbudinhos de binóculo e bermudas mostrando as emoções da vida selvagem (produzida, aposto, lá nos estúdios do George Lucas. Vida selvagem é isto aqui, maibródi).

Sobretudo, há os programas de auditório da RAI -indiscutivelmente os mais cafonas do mundo. Há coreografias que lembram a abertura do "Fantástico" circa 1973, apresentadores conversando com cachorros, senhores de meia-idade com topetes descoloridos, luxo, glamour e riqueza (e, se você der sorte, uma ou outra reprise do Festival de San Remo de 1964). Por mais que se esforce, Abravanel, meu ídolo, jamais chegará a esse alto nível de cafonice: o programa do Patrão é pobre, pobre, pobre de marré, marré, marré. O que me leva à seguinte conclusão: o melhor critério para saber se um país está ou não no Primeiro Mundo não é PIB, grau de escolaridade ou consumo médio de calorias, mas a opulência do mau gosto de seus programas de auditório. Se a ONU fosse séria, descartaria o tal Índice de Desenvolvimento Humano e mandaria seus observadores ao programa do Daltro Cavalheiro.