9.9.04

Literatura, pé na porta e soco na cara

Não sei o que seria de mim sem meus amigos letrados. Não fosse por eles, jamais saberia dizer o que é literatura, assim como ninguém pode saber como foi um jogo de futebol até ouvir o que Casagrande, Chico Lang ou o eclético Orlando Duarte têm a dizer. Mas confiança em argumentos de autoridade às vezes produz confusões. Outro dia, alguém me assegurou que literatura era coisa de "anglo-saxão", maneira polida de se referir a gente que dá o bozó. Nada contra quem fornece o que é seu etc., não se trata disso. A ficha caiu, simplesmente: é por isso que sempre me irritei com aqueles "old boy" e "by Jove" incessantemente repetidos ao longo da "Ilíada" e nunca pude tolerar o sotaque cockney de Arquíloco -aquele sujeito que, escrevendo, soava como o Michael Caine falando. Logo concluí, tristemente, que literatura não era para o meu bico e voltei a estudar latim vendo aqueles velhos comerciais de chester ("coxobus suculentus, pectus fartus").

Outra pessoa que admiro, porém, me advertiu de que vivemos uma ditadura das coisas desinteressantes ditas interessantemente. Eis como o esquema funciona: você apenas ameaça escrever alguma coisa interessante -às cinco da manhã, quando ninguém está vendo- e a puliça enfia o pé na sua porta, põe um capuz na sua cabeça, leva-o para lugar incerto e não sabido e o submete a sessões de afogamento, choque no saco e audição ininterrupta da opera omnia do Dire Straits. É exatamente o que a ditadura da estética faz com as mulheres que não malham nem põem silicone nos seios (e isso inclui os choques no saco. Não sabiam? Terrível). Ora, assim, literatura volta a ser bom negócio -se sobrevivermos, vamos pedir altas indenizações, escrever livros sobre a bravura da nossa geração, ganhar colunas em jornais da Botocúndia etc. Sounds good to me. Anglofilia-aaa, eu quero uma pra viver.