Pequena antologia goiabal
Gustavo Corção (1896-1978)
"Suponha (...) o leitor que um velho amigo entra em sua casa, esfregando as mãos, com a fisionomia banhada de gozo, e lhe confia o seu segredo depois de algumas hesitações: - Achei uma solução para o problema da minha barba! O leitor gostará de ouvir a notícia porque também tem barba e sobretudo porque também tem bons sentimentos. (...) Mas suponha o leitor, mais uma vez, que o amigo chegue ainda mais resplandecente, dizendo em meias palavras que achou a solução para a barba, para o café da manhã, para o lugar do pijama, para a tristeza de seu jantar e para a solidão insuportável de suas noites. Então deveremos pensar simplesmente que o amigo, no fim dessa fastidiosa enumeração, anunciará o seu noivado. É a idéia que logo ocorre a alguém que possua um certo senso de objetividade e uma noção de homogeneidade. Sabemos que não existe utensílio para tantas utilidades que tocam tão de perto os problemas de uma pessoa. Também não será um sistema, uma teoria, uma causa; essas coisas não fazem companhia a ninguém. Ninguém consegue jantar com um teorema ou passar uma noite de núpcias com uma idéia. (...)
Quando o amigo confessar que achou a noiva, dizendo seu nome, o jeito que ela tem, e encetar uma longa enumeração das prendas de sua eleita, ainda podemos achar sua exuberância um pouco ridícula, sentir alguma inquietação, porque conhecemos inúmeros casamentos maus que começaram em noivados fervorosos. A moça talvez seja uma tola qualquer que agradou pelo cabelo ou pelo talhe; como somos pessimistas nessa matéria, recearemos que nosso amigo se tenha enganado e que dentro de alguns anos nos venha visitar com meias palavras e reticências acabrunhadas. (...) Mas num ponto estamos tranqüilos: pelo menos, a equação que o amigo armou é homogênea, pôs pessoa de um lado e pessoa de outro, ou pretende somá-las por um sinal que é uma crucificação. A equação poderá estar errada, ou tornar-se errada em uma de suas transformações, errada na medida, na justa medida; mas está certa em relação ao senso comum. Alarmados ficaríamos, até o extremo limite, se o amigo nos viesse anunciar seu noivado com um teodolito ou com uma causa. Ora, outra coisa não se tem feito no mundo senão equações sem homogeneidade."
(Trecho editado de "A Descoberta do Outro", livro de estréia de Corção, escrito em 1944 e disponível em edição recente, de 2000, pela Agir. Ele narra sua conversão numa mistura particularíssima de crônica e ensaio. Leiam, leiam. Sim, até você, seu incréu.)
"Suponha (...) o leitor que um velho amigo entra em sua casa, esfregando as mãos, com a fisionomia banhada de gozo, e lhe confia o seu segredo depois de algumas hesitações: - Achei uma solução para o problema da minha barba! O leitor gostará de ouvir a notícia porque também tem barba e sobretudo porque também tem bons sentimentos. (...) Mas suponha o leitor, mais uma vez, que o amigo chegue ainda mais resplandecente, dizendo em meias palavras que achou a solução para a barba, para o café da manhã, para o lugar do pijama, para a tristeza de seu jantar e para a solidão insuportável de suas noites. Então deveremos pensar simplesmente que o amigo, no fim dessa fastidiosa enumeração, anunciará o seu noivado. É a idéia que logo ocorre a alguém que possua um certo senso de objetividade e uma noção de homogeneidade. Sabemos que não existe utensílio para tantas utilidades que tocam tão de perto os problemas de uma pessoa. Também não será um sistema, uma teoria, uma causa; essas coisas não fazem companhia a ninguém. Ninguém consegue jantar com um teorema ou passar uma noite de núpcias com uma idéia. (...)
Quando o amigo confessar que achou a noiva, dizendo seu nome, o jeito que ela tem, e encetar uma longa enumeração das prendas de sua eleita, ainda podemos achar sua exuberância um pouco ridícula, sentir alguma inquietação, porque conhecemos inúmeros casamentos maus que começaram em noivados fervorosos. A moça talvez seja uma tola qualquer que agradou pelo cabelo ou pelo talhe; como somos pessimistas nessa matéria, recearemos que nosso amigo se tenha enganado e que dentro de alguns anos nos venha visitar com meias palavras e reticências acabrunhadas. (...) Mas num ponto estamos tranqüilos: pelo menos, a equação que o amigo armou é homogênea, pôs pessoa de um lado e pessoa de outro, ou pretende somá-las por um sinal que é uma crucificação. A equação poderá estar errada, ou tornar-se errada em uma de suas transformações, errada na medida, na justa medida; mas está certa em relação ao senso comum. Alarmados ficaríamos, até o extremo limite, se o amigo nos viesse anunciar seu noivado com um teodolito ou com uma causa. Ora, outra coisa não se tem feito no mundo senão equações sem homogeneidade."
(Trecho editado de "A Descoberta do Outro", livro de estréia de Corção, escrito em 1944 e disponível em edição recente, de 2000, pela Agir. Ele narra sua conversão numa mistura particularíssima de crônica e ensaio. Leiam, leiam. Sim, até você, seu incréu.)
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