Quando vi "Kika", do
Almodóvar, devia ser 1992 ou 1993; eu saíra da faculdade de jornalismo fazia pouco tempo. Na época, a babação dos críticos de cinema sobre os filmes de seus cineastas preferidos -todos, sem distinção entre os bons, os mais-ou-menos e, eventualmente, os ruins- já me incomodava. (Minha alergia ao
hype ficaria pior. Hoje, só vou ver aquele-filme-do-qual-todo-mundo-está-falando uns três ou quatro anos depois, quando os cadernos culturais já se esqueceram dele. Sei que é um defeito: uma de suas conseqüências é eu não ter visto "De Olhos Bem Fechados" até hoje.) E o sósia do
Leo Jaime era objeto desse tipo de babação desde "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos". Mas, bem, nesse caso eu concordava com parte das críticas, gostava dos filmes do gajo. E lá fui eu ver "Kika", com
hype e tudo.
Saí da sala de cinema e, passada a breve ofuscação de quando a gente deixa aquele lugar escuro e reencontra a luz habitual do mundo, consegui articular uma opinião: não gostei. Mesmo. Por que não? Porque, para mim, o filme era mal resolvido. Começava como uma comédia meio escrachada, na linha dos filmes iniciais do Almodóvar, e lá pelo meio virava um melodrama pesado, quase sem humor. Não havia costura, fluência, nem mesmo equilíbrio entre essas duas partes. Fui aos jornais reler as críticas e lá estava a babação, com altíssimas doses de pirobagem: todos dizendo que "Kika" era um ótimo filme, um dos melhores do espanhol etc. Não era, caramba: eu conhecia razoavelmente a filmografia do cara. Como gente paga para escrever, de cultura cinematográfica presumivelmente bem maior que a minha, não percebia o que até eu via como pontos fracos? Concluí, portanto, que bastava Almodóvar pôr sua assinatura em algum filme, qualquer filme -se não fosse escandalosamente ruim, a louvação seria unânime.
Hoje, passados 11 ou 12 anos, vejo "Kika" como uma transição para o tipo peculiar de melodrama no qual Almodóvar acertaria a mão a partir de "Carne Trêmula". Claro, não se pode prever se a carreira de um cineasta vai evoluir, involuir, implodir ou andar de um lado para outro feito bêbado. Mas é possível ser menos vítima do
hype.
"Carne Trêmula", aliás, tem duas cenas que me fazem pensar numa involução dos espectadores de cinema: a inicial e a final (se você ainda não viu o filme e quer ver, não leia o que segue). O início mostra as ruas de Madri, à noite, no início dos anos 70, época do nascimento do personagem principal: sombrias e praticamente desertas, como convém a uma representação visual da ditadura franquista. A última cena mostra as mesmas ruas no fim da década de 90 -muito mais alegres e iluminadas, cheias de gente feliz circulando por elas e piririm e pororom. O protagonista, interpretado por Liberto Rabal, explica ao filho (ainda por nascer? Já nascido? Não lembro) que os tempos são outros. É uma bonita cena, mas, pelo visto, não basta que as imagens deixem claríssima toda a diferença entre uma época e outra: é preciso que as palavras também a expliquem, da maneira mais estridente possível.
Se há um lugar em que aquele clichê das "imagens que valem por mil palavras" é verdadeiro, é o cinema:
Hitchcock, em seu ótimo livro de entrevistas a
Truffaut, insistia muito na importância de dizer com imagens. Hoje o público quer tudo beeem explicadinho, nos mííínimos detalhes. Almodóvar ainda é esperto o suficiente para fazer bom cinema
giving the people (opa)
what they want.