29.10.04

E o pastor fez a maior cachorrada

Se há uma coisa que eu adoro é constatar quão bem empregado é o dinheiro que gastamos com os políticos. Vejam, por exemplo, a beleza e a relevância do projeto de lei apresentado por um deputado gaúcho, aparentemente bípede e implume, de nome Pastor Reinaldo: ele quer proibir os donos de animais de estimação de dar aos bichos nomes próprios que sejam comuns às pessoas.

Embora reconheça a importância da proposta, entendo que ela trará problemas se for aprovada. Vejam: nenhum cachorro poderá ser chamado de Rex por causa do Rex Harrison. Bidu também não dá, há risco de confusão com a Bidu Sayão. Totó fica proscrito, em homenagem à memória do comediante italiano. Nem pense em chamar seu gato de Félix, para não ofender o goleiro da seleção de 70 ou os antepassados de Felix Mendelssohn. Muito menos Tom, profanação do santo prenome de Jobim, Jones e inúmeros outros. Até a hipótese de dar uma de Graciliano Ramos e batizar sua cadela como Baleia estará fora de cogitação graças à existência do glorioso Baleia Rossi, candidato à prefeitura de Ribeirão. E o efeito retroativo da lei, certamente previsto, nos obrigará a reescrever "Quincas Borba" (que idéia imbecil essa do Machado: um personagem que dá o próprio nome a seu cão. Francamente).

O único brasileiro a salvo dessas restrições todas, ao que parece, é o ator Luiz Fernando Guimarães, cujo cão se chama Cão. Assim, em vista dessas dificuldades de aplicação, proponho duas emendas ao projeto. Na primeira, permite-se que bichos de estimação sejam batizados com nomes bíblicos (Habacuc, Jeconias, Jeroboão, Zorobabel e outros que soem igualmente bem). Se não for aprovada, uma segunda nos concederá o direito de chamar de "Reinaldo" todos os cachorros do país, pastores ou não. Que tal?

26.10.04

Novas propostas para um mundo mais melhor

Uma reforma do Código Penal que inclua um capítulo novo, "Dos crimes contra a estética". Se me fosse dado escolher, colocaria nela o uso de pochete como crime hediondo, inafiançável. Minha proposta inclui campanhas de despocheteamento: imaginem dezenas de sujeitos vestindo moletom e mocassim caramelo, sem meia, na fila para entregar sua pochete na delegacia mais próxima. Todos seriam, é claro, presos no ato por atentado violento à estética, desacato ao bom gosto e mais uns três ou quatro artigos. É a festa da cidadania. Unha comprida do dedo mindinho também está na minha lista de crimes hediondos. E vocês, o que acham que deveria constar dessa grande reforma estética do Código Penal?

23.10.04

Duda e Lula, hooooou

Isso é que é armação ilimitada.

22.10.04

Conversas comigo mesmo (2)

Quando vi "Kika", do Almodóvar, devia ser 1992 ou 1993; eu saíra da faculdade de jornalismo fazia pouco tempo. Na época, a babação dos críticos de cinema sobre os filmes de seus cineastas preferidos -todos, sem distinção entre os bons, os mais-ou-menos e, eventualmente, os ruins- já me incomodava. (Minha alergia ao hype ficaria pior. Hoje, só vou ver aquele-filme-do-qual-todo-mundo-está-falando uns três ou quatro anos depois, quando os cadernos culturais já se esqueceram dele. Sei que é um defeito: uma de suas conseqüências é eu não ter visto "De Olhos Bem Fechados" até hoje.) E o sósia do Leo Jaime era objeto desse tipo de babação desde "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos". Mas, bem, nesse caso eu concordava com parte das críticas, gostava dos filmes do gajo. E lá fui eu ver "Kika", com hype e tudo.

Saí da sala de cinema e, passada a breve ofuscação de quando a gente deixa aquele lugar escuro e reencontra a luz habitual do mundo, consegui articular uma opinião: não gostei. Mesmo. Por que não? Porque, para mim, o filme era mal resolvido. Começava como uma comédia meio escrachada, na linha dos filmes iniciais do Almodóvar, e lá pelo meio virava um melodrama pesado, quase sem humor. Não havia costura, fluência, nem mesmo equilíbrio entre essas duas partes. Fui aos jornais reler as críticas e lá estava a babação, com altíssimas doses de pirobagem: todos dizendo que "Kika" era um ótimo filme, um dos melhores do espanhol etc. Não era, caramba: eu conhecia razoavelmente a filmografia do cara. Como gente paga para escrever, de cultura cinematográfica presumivelmente bem maior que a minha, não percebia o que até eu via como pontos fracos? Concluí, portanto, que bastava Almodóvar pôr sua assinatura em algum filme, qualquer filme -se não fosse escandalosamente ruim, a louvação seria unânime.

Hoje, passados 11 ou 12 anos, vejo "Kika" como uma transição para o tipo peculiar de melodrama no qual Almodóvar acertaria a mão a partir de "Carne Trêmula". Claro, não se pode prever se a carreira de um cineasta vai evoluir, involuir, implodir ou andar de um lado para outro feito bêbado. Mas é possível ser menos vítima do hype.

"Carne Trêmula", aliás, tem duas cenas que me fazem pensar numa involução dos espectadores de cinema: a inicial e a final (se você ainda não viu o filme e quer ver, não leia o que segue). O início mostra as ruas de Madri, à noite, no início dos anos 70, época do nascimento do personagem principal: sombrias e praticamente desertas, como convém a uma representação visual da ditadura franquista. A última cena mostra as mesmas ruas no fim da década de 90 -muito mais alegres e iluminadas, cheias de gente feliz circulando por elas e piririm e pororom. O protagonista, interpretado por Liberto Rabal, explica ao filho (ainda por nascer? Já nascido? Não lembro) que os tempos são outros. É uma bonita cena, mas, pelo visto, não basta que as imagens deixem claríssima toda a diferença entre uma época e outra: é preciso que as palavras também a expliquem, da maneira mais estridente possível.

Se há um lugar em que aquele clichê das "imagens que valem por mil palavras" é verdadeiro, é o cinema: Hitchcock, em seu ótimo livro de entrevistas a Truffaut, insistia muito na importância de dizer com imagens. Hoje o público quer tudo beeem explicadinho, nos mííínimos detalhes. Almodóvar ainda é esperto o suficiente para fazer bom cinema giving the people (opa) what they want.

20.10.04

Conversas comigo mesmo (1)

Eu tinha 16 ou 17 anos quando decidi começar a ler Baudelaire. Comprei nessa época a tradução das "Flores do Mal" feita pelo Ivan Junqueira, cuja capa trazia a clássica foto do poeta, com cara de pouquíssimos amigos, feita por Étienne Carjat. Entendo por que a Nova Fronteira trocou a capa nas edições subseqüentes. Embora já gostasse de poesia, tive de me esforçar para ler o livro até o fim; os temas eram legais (que adolescente fã de Augusto dos Anjos não apreciaria um poema como "Uma Carniça"?), mas o estilo de Baudelaire me parecia solene, pomposo, às vezes até arrastado.

Claro, não era o estilo de Baudelaire, e sim o de Ivan Junqueira. Eu não sabia quase nada de francês quando li as "Flores" pela primeira vez; comecei a aprender a língua pouco depois. Quando me vi capaz de encarar as "Fleurs" no idioma original, percebi que Baudelaire era um cara incapaz de escrever um verso ruim (aqui, o fantasma de Manuel Bandeira sussurra no meu ouvido que há poemas perfeitos, não poetas perfeitos. Está certo; ele mesmo o prova). Mais: notei que, no poète maudit, com todo o rigor que lhe era característico, muitos dos melhores versos eram os de sintaxe mais simples, os mais naturalmente fluentes -quase coloquiais.

Junqueira deve ter pensado algo como "não, isto é Baudelaire, bardo coberto de glórias; vou vestir meus punhos de renda para traduzir". O resultado foi dar uma parnasianizada no poeta, que ficou, na tradução, mais parecido com Gautier ou Leconte de Lisle do que consigo mesmo. (Resenha publicada pela "Veja" há pouco informa que Junqueira fez coisa parecida em suas versões de T.S. Eliot.) Dois exemplos colhidos a esmo: "ma pauvre muse, hélas! qu'as-tu donc ce matin?" vira "que tens esta manhã, ó musa de ar magoado?", e "tu réclamais le Soir; il descend; le voici" se transforma em "reclamavas a tarde; eis que ela vem descendo".

Sei que, em português, é difícil alexandrinos soarem tão naturais quanto decassílabos. Também sei que traduzir poesia é ainda mais difícil e não quero ser injusto. Mas o exemplo me fez entender que, se o poeta é bom, mesmo a melhor tradução será uma nota de pé de página (excepcionalmente esclarecedora e, às vezes, até bonita) do original. "Oscilação permanente entre o som e o sentido", dizia Valéry da linguagem poética. O sentido é fácil contrabandear, mas os sons insistem em ficar do outro lado da fronteira. Hélas.

19.10.04

Fundo Estadual de Fomento à Rebeldia

Artistas abrem o berreiro pela implantação de um fundo que "prevê o fomento anual de R$ 100 milhões para áreas como hip hop, cinema, música, dança, circo, teatro, artes plásticas etc., numa parceria do Estado com as prefeituras". É bonito ver uma coisa dessas: toda a rebeldia dos mano do hip-hop, para ficar em apenas um dos exemplos, subsidiada pelo dinheiro que o governo tunga de mim e de você, leitor hipócrita, todo mês (tunga feita na fonte, comme il faut, que elisão fiscal é para sonegadores chiques).

Que não se veja nem sombra de ironia aqui: creio sinceramente que o Zé Faminto que trabalha feito um camelo, ganha mal, mora na putaquepariu e precisa sustentar família -às vezes até mais de uma- tem a obrigação moral de deixar de comer para que o cineasta de vanguarda e a galerinha do tchiatro façam suas obras. Ora, Zé, deixe de frescura: você já nem come direito mesmo. Maltratados pela sociedade, afinal, são os gajos que cantam os mano pow e as mina pá, não você. Nem venha com esse papo.

(Seres jurássicos como eu devem se lembrar de uma cartunista chamada Ciça, que desenhava as tirinhas "O Pato" na Folha dos anos 80. A melhor que li mostrava uma adolescente conversando com a mãe. Queria sair pelo mundo, livrar-se das amarras da família, viver a vida, yadda-yadda. No último quadrinho, ela perguntava à mãe: "Você financia a minha independência?". Esse é o melhor dos mundos. Quem não quer mamar no Estado-mãe?)

Revolução com segurança total é só no caminhão da Granero.

18.10.04

Pornocracia representativa

Ainda que tardiamente, este blogue louva como um exemplo de democracia a eleição de Débora Soft -"estudante de administração, stripper e artista de séquiço explícito"- para uma vaga na Câmara Municipal de Fortaleza, com 11,8 mil votos. Certamente, nossos bravos amigos alencarinos cansaram-se de votar nos filhos das putas e decidiram sufragar as próprias, sem intermediários. E eu torço por Débora, confesso. Estou certa de que ela fará de tudo pelo povo de Fortaleza, menos beijar na boca: fodelança, ordem e progresso, como recomendava o velho bandalho Auguste Comte.

16.10.04

Por que me ufano deste país

"Eu sou brasileiro e não limpo a bunda!"

15.10.04

O ano passado em Maringá

Queria escrever um roteiro cinematográfico que misturasse nouveau roman com a nobre tradição do cinema nacional. O filme resultante já nasceria podre de velho e, portanto, teria mais chances de obter verba pública. Por enquanto, só idéias esparsas. A voz de um narrador que repete infinitamente aquela fala do Roberto Bonfim em "Fulaninha" ("e você é um cineasta de meeerda, que fica atrás de uma menina que não tem nem penteeelho... cineasta de meeerda... não tem nem penteeelho.... meeerda... penteeelho...") enquanto a câmera passeia lentamente pelos suntuosos detalhes arquitetônicos de um bordel em Goio-Erê. Um ambiente repleto de mulheres mijando em silêncio. Uma paisagem de mandacarus que não fazem sombra. Pereio como X, o Estranho, Monique Lafond como A, a Mulher, e Jonas Mello como M, o Marido. Nelson Gonçalves como música de fundo. Cinco minutos de close na cara de Jofre Soares chupando um fiapo de manga entre os dentes. São idéias tão geniais que o filme nem precisa se dar ao luxo de ser produzido -a mim basta o financiamento.

9.10.04

O último Carnaval do bloco "Derrida ou Desce"

Desconstrução de verdade é isso aí, rapaz.

7.10.04

Lemas para uso pessoal (3)

"Examinai tudo. Retende o bem."

(Paulo, aquele -o ex-Saulo que inventou o cristianismo. Admito, porém, que esse também não chega a ser um lema. O santo que me desculpe, mas "examinar tudo" nem os médicos, que são pagos para isso, conseguem. Dependendo da circunstância, só o "não vi e não gostei" do Oswald de Andrade pode resolver a parada.)

6.10.04

Lemas para uso pessoal (2)

"Estes são os meus princípios. Se você não gostar, tenho outros."

(Groucho, o único marxista crível. Na verdade, até que nem tenho usado muito esse lema. Guardo-o para o caso de entrar na política algum dia *bate-na-madeira, cruz-credo, arreda-cramulhão*.)

5.10.04

Lemas para uso pessoal (1)

"Dai-me a castidade e a continência, mas não para já."

(Aurélio Agostinho, antes da conversão e de virar blogueiro.)

3.10.04

Bota, Brasil

Se analfabetos votam, por que não podem ser votados? Pensando bem, na prática, já podem; o problema não é esse. Chato mesmo é limitar o sufrágio, preconceituosamente, aos seres humanos. Por que não Cacareco, Macaco Tião e Incitatus no Legislativo? Que democracia é essa que, além de me fazer sair de baixo do edredom num domingo chuvoso para corroborar o teatrinho de praxe, ainda me impede de votar num teodolito? Bando de pirobos.

Sonho com o dia em que, graças a um programador de urna eletrônica com senso de humor, poderemos digitar 666 e fazer a cara do Tinhoso aparecer na telinha. Sim, sei que já temos o Zé do Caixão, está quase lá; mas não é o mesmo. A única coisa boa desta eleição era aquela moça morena que aparecia em algumas propagandas televisivas da Justiça Eleitoral. Hmmm, aquele olhar sacana ao explicar o uso correto da urna não deixava dúvidas.