30.8.03

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL

Hans Magnus Enzensberger (1929-)

Por Que os Poetas Mentem: Motivos Adicionais

Porque o momento
em que a palavra feliz
é dita
nunca é o momento da felicidade.
Porque o sedento não traz
aos lábios sua sede.
Porque pela boca da classe operária
não passa a expressão classe operária.
Porque quem se desespera
não tem vontade de dizer:
"Estou desesperado".
Porque orgasmo e orgasmo
estão a mundos de distância.
Porque o moribundo, em vez de declarar
"estou morrendo", estertora apenas
um gemido baixo
e, para nós, incompreensível.
Porque são os vivos
que enchem o ouvido dos mortos
com suas notícias atrozes.
Porque as palavras sempre chegam
tarde demais ou cedo demais.
Porque é um outro,
sempre um outro,
quem fala
e porque
aquele de quem se fala
silencia.


(De "O Naufrágio do Titanic", 1978. É mais ou menos uma versão brechtiana da "Autopsicografia" do P'ssoa. Tradução de Nelson Ascher, o Major Nelson do seriado "Joyce é um Gênio".)

29.8.03

FLASH MOB É COISA DE COMUNISTA

Brasileiro não entende nada de flash mob mesmo. Muito menos os imperialistas ianques. Quem entendia eram os comunas de boa cepa. Bastava que alguém perguntasse a Lênin: "Que fazer?". Ele imediatamente assumia aquela pose de estátua -cavanhaque para cima, braço estendido na mesma direção do queixo- e apontava para o Palácio de Inverno: num instante, a bolchevicaiada toda se juntava para chutar a bunda de Nicolau II e dar uns amassos na princesa Anastácia. Ou para escrever poesia cubo-futurista. Ou, ainda, para discutir os planos qüinqüenais. Enfim, assim como acontece com as flash mobs de hoje, o objetivo era fazer alguma coisa bem idiota e incompreensível -e eles conseguiam isso brilhantemente, sem celular e sem e-mail, mas com a lata cheia de vodca. É por isso que eu visto meu casaco do Exército Vermelho, bato no bumbo e canto "tempo bom, não volta mais..." em russo.

28.8.03

O DIÁCONO DO ATEÍSMO

O título, surrupiado do meu caro César Miranda, define bem Daniel Piza e dois dos últimos artigos que ele escreveu para o "Estadão". Resumidamente, ele se queixa de que o preconceito contra ateus e agnósticos chegou ao ponto de esses dois termos, hoje, terem conotação pejorativa. Cita um grupo dos EUA cujos integrantes, sem crença religiosa, preferem ser chamados de "brights" (sim, "brilhantes"; dá para ouvir João Bosco cantando, ao fundo, "minha pedra é ametista, minha cor o amarelo...") e a Sociedade da Terra Redonda, que opta pelo uso de "lúcidos" para os mesmos casos.

O que acho disso? Ora, dou o maiorrrapoio. Por um lado, é muito bacana que esse conceito de lucidez abranja gente como Nietzsche, titio Stálin e Louis Althusser, aquele filósofo que matou a mulher estrangulando-a de modo nada dialético. Por outro, também me sinto intoleravelmente incomodado quando circulo entre pessoas magras e leio a palavra "gordo" em seus olhares de reprovação. Repudio a carga pejorativa do termo e conclamo meus colegas de infortúnio a exigir que só se refiram a nós como "sólidos".

Ah, sim, tenho uma tese para o papel de diácono ateu assumido por Piza. Nosso amigo, há cerca de dez anos, foi o autor do erro mais antológico dentre todos os que a "Folha" já publicou (mesmo considerando a prodigalidade do jornal nesse quesito): "Gólgota é o lugar onde Jesus foi enforcado". De quebra, também colocou no Velho Testamento a frase que abre o Evangelho de São João, "no princípio era o Verbo" -erro evitável com uma olhadinha no Gênesis, coisa talvez trabalhosa demais para um "brilhante". Pior: Haroldão "Papai Noel" de Campos citou isso numa carta ao jornal em que respondia a uma crítica do repórter. Piza, qual Lúcifer, revoltou-se e decidiu lutar contra o barbudo com a coroa de espinhos e seus seguidores, até o fim dos seus dias. Faz sentido.

27.8.03

OSAMA ESTÁ ENTRE NÓS

E Baiano Meloso colocou uma barbinha postiça para homenagear os Loser Manos na premiação da MTV. Cascalho. Não havia um só republicano na platéia que ligasse para George W. Bush e dissesse "achamos Osama!"? Onde está a CIA quando mais precisamos dela?

26.8.03

ZIRIGUIDUM, TELECOTECO E FORROBODÓ

1) O atual pingüim cover parece Kofi Annan, mas não é outro senão Dario -o homem da solucionática, aquele que pára no ar sem ser helicóptero nem beija-flor, o genial inventor da banguela convexa. Se houvesse eleição para secretário-geral da ONU, Dadá seria meu candidato -e, se me pedissem uma lista tríplice, eu incluiria Tiririca e Chapolim. 2) Esta era a manchete da "Folha" de ontem: "Ministro quer assentar em área pública". Ora, que jornalzinho mais preconceituoso. Por mim, Miguel Rossetto pode assentar onde quiser, desde que não espante os cavalos na rua. Paulo Coelho também assentou e chorou na margem do rio Piedra e ninguém o incomoda por isso. 3) Sugestão para uma campanha publicitária internacional: "Venha conhecer Neverland, o maravilhoso rancho de Michael Jackson. Crianças até 12 anos não pagam".

25.8.03

PRESTE ATENÇÃO, O MUNDO É UM RODÍZIO...

Como é difícil blogar no domingo. Percebi isso faz tempo, mas só atinei com a explicação depois de ouvir as palavras de infinita sabedoria do companheiro presidente. Sou um daqueles "apressados" que enchem o bucho de maionese, o que explica minhas viagens na própria e a baixíssima irrigação sanguínea do meu cérebro aos domingos: tudo desce para o estômago supramencionado. Apesar da comilança e diferentemente do que mr. da Silva supõe, sempre há espaço para o coração de galinha, a picanha e até para aquela bananinha da sobremesa. Contudo, quando o rodízio é promovido pelo governo, o prato principal é sempre um peru na bunda -e, se você recusar, eles ainda acham que é falta de educação para a cidadania. Como vovô Milton Friedman já dizia, there's no such thing as a free barbecue.
NOTAS ALEATÓRIAS E DESINTERESSANTES

1) Se eu não fosse Ruy Goiaba, dono de um blog geminiano -segundo meu caríssimo Felipe Ortiz-, o que seria? Minhas opções de nom de plume eram Nerbal Xampu, Hydraulico de Oliveira e dr. Busílis da Gama e Silva (aqui, o "doutor" é fundamental. Sempre imaginei "busílis" como nome de desembargador -grande, gordo e hierático, com no mínimo duas papadas). Escolhi Goiaba porque me pareceu resumir o espírito da coisa. Mas, no fundo, eu acho que deveria me chamar Aspecto Lúdico de Sá Menezes. 2) Preta Gil é uma figura do Di Cavalcanti redesenhada pelo Botero, com algumas pitadas de Hieronymus Bosch e Pierre "Fatumbi" Verger. Outro dos meus possíveis infernos é ser esmagado por uma Preta Gil gigante e pelada. Até já tive pesadelos com isso, mas fui salvo pelo Spectreman. 3) Nota para um ensaio de interpretação djavanesca (o título, ainda provisório, é "O Homem Que Sabia Djavanês"): "caetanear o que há de bom" equivale a fazer com o-que-há-de-bom o mesmo que o Pomba's Coiffeur faz com o cabelo de suas clientes.

24.8.03

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL

Denis de Rougemont (1906-1985)

"Todos nós, herdeiros do século XIX, somos mais ou menos materialistas. Se nos mostram rudimentos de fatos 'espirituais' na natureza ou no instinto, logo julgamos possuir uma explicação para esses fatos. O mais baixo parece-nos o mais verdadeiro. É a superstição do tempo, a mania de 'reduzir' o sublime ao ínfimo, o estranho erro que toma por causa suficiente uma condição simplesmente necessária. É também o chamado escrúpulo científico, do qual precisamos para libertar o espírito das ilusões espiritualistas. Mas não consigo compreender o interesse de uma libertação que consiste em 'explicar' Dostoiévski pela epilepsia e Nietzsche pela sífilis. Curiosa maneira de libertar o espírito, essa que se 'reduz' a negá-lo."

(Trecho de "História do Amor no Ocidente", escrito em 1938 e revisto em 1956. Nesse livro, Rougemont aponta como origem do "imaginário da paixão" a poesia provençal do século XII e faz um paralelo, sempre discutível, entre essa literatura e a heresia cátara. Há edição nacional recente e gloriosamente cafona, da Ediouro -os caras conseguiram superar até aquela caixa do Proust cujo padrão gráfico era semelhante ao de uma embalagem de Vinólia. Mas leiam, leiam. Para mim, só o trecho acima já valeu a aquisição.)

22.8.03

EXPERIMENTALISMO LINGÜÍSTICO E SAMBÃO JÓIA

O puragoiaba apóia irrestritamente a campanha pela reabilitação intelectual de Luiz Ayrão, o sambista das sobrancelhas de taturana, lançada pela Praia do Nelson. Esse processo deve, é claro, incluir a revisão do status musical de Luiz Américo, Antônio Carlos & Jocafi, Originais do Samba -principalmente em sua fase "A Dona do Primeiro Andar"- e, sobretudo, Benito Di Paula, o verdadeiro Senhor dos Anéis (um em cada dedo). Classificados depreciativamente como "sambão jóia", esses compositores foram pontas-de-lança de um arrojado experimentalismo lingüístico. Basta lembrar, de Ayrão, o verso "esse rapaz androginou" -que eu atribuí erroneamente ao boné do Luiz Américo, muitos posts atrás- e, de Antônio Carlos & Jocafi, o imortal "o quadradismo dos meus versos vai de encontro aos inteléquitos". São ou não são dois neologismos joycianos de fazer inveja a Baiano Meloso?

21.8.03

PARAGUAI, FAROL DA HUMANIDADE

Poucos países terão sido tão vilipendiados quanto o Paraguai. Trata-se, é claro, de uma clamorosa injustiça. Não é correto relegar à lata de lixo da história um país que exporta guarânias, legítimos DVD players japoneses e uísque Old Stroessner da melhor qualidade. Quem poderá negar que a fama das Highlands escocesas não se deve ao puro malte, mas ao puro marketing? O que elas têm que o Chaco não tem? Não nos esqueçamos das guapíssimas mujeres paraguayas: um lugar que já produziu Perla deveria ser celebrado como a maior ostra da América Latina. Sem falar em Verônica Castiñeira, capa da Playboy no início dos anos 90 e inspiração para milhares de adolescentes espancadores de macacos. O Brasil só dará certo quando se assumir como uma Pedro Juan Caballero lusoparlante e for anexado ao Paraguai. Índias de cabelos negros como a noite que não tem luar, lembranças de Ypacaraí e contrabando: nosso destino manifesto.

19.8.03

A POLÍCIA ESTÉTICA PAVLOVIANA

Honestamente, não entendo por que o fato de Gerald Thomas exibir o derrière para espectadores descontentes com sua, ahn, "desconstrução" de "Tristão e Isolda" está causando tanta controvérsia. Mostrar a bunda é uma atitude perfeitamente coerente com as idéias e o estilo argumentativo do diretor -e, se ele separasse as nádegas com as mãos, veríamos com clareza uma síntese do seu teatro (lembrem-me, a propósito, de escrever aqui sobre o "Calipígio", diálogo perdido de Platão em que Sócrates demonstra a Crítias e Eutidemo a irrefutabilidade filosófica da exposição bundal). O que é necessário, mas ninguém tem coragem de implementar, é uma polícia estética com métodos pavlovianos. Mais ou menos assim: Gerald leva um choque elétrico sempre que tenta tocar numa obra de Richard Wagner. José Celso Martinez Corrêa leva outro choque ao se aproximar de Euclides da Cunha. E por aí vai. Posta em prática, essa idéia significaria o fim do puragoiaba -só com as fotos que coloquei no blog, eu já teria sido eletrocutado- e, sem dúvida, um bem para a humanidade.

18.8.03

FILOSOFIA DO JOQUEMPÔ

Albert Camus dizia ter aprendido nos campos de futebol tudo o que sabia. De fato, não é difícil imaginar um goleiro, com o sol do meio-dia na cara, cair matando em cima de um centroavante árabe. Mais modestamente, digo a vocês que aprendi tudo o que sei com o joquempô: tesoura corta papel, pedra esmaga tesoura, papel embrulha pedra. Sempre achei muito zen essa história de a pedra nada poder contra o papel. O único problema é descobrir, com o tempo, que somos papéis diante das tesouras, tesouras sob as pedras e pedras embrulhadas por um monte de papéis. Life sucks.

17.8.03

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL

Theodor W. Adorno (1903-1969)

"No jazz estão presentes mecanismos que pertencem na verdade à indústria cultural como um todo (...). Paralelamente à estandardização há uma pseudo-individualização. Quanto mais os ouvintes são mantidos na linha, menos devem percebê-lo. Procura-se fazê-los crer que se trata de uma 'arte para consumidores' feita sob medida para eles. (...) Enquanto promete incessantemente ao ouvinte algo de especial, instigando sua atenção com algo que deve escapar à monotonia, não deve jamais ultrapassar limites bem definidos. A música deve ser sempre nova e sempre a mesma. Por isso os desvios são tão estandardizados quanto os standards, sendo recolhidos no próprio momento em que são introduzidos: o jazz, como toda a indústria cultural, satisfaz os desejos apenas para, ao mesmo tempo, frustrá-los."

(Trecho de "Moda Intemporal", ensaio de 1953 recolhido na coletânea "Prismas". Quem lê esse texto nota que Teddy Adorno não entendeu patavina de coisas como a improvisação jazzística. Mas -para provocar meus caros blog'n'rollers- troque "jazz" por "roquenrol" e veja se o trecho acima não se encaixa como luva.)

16.8.03

A EPIFANIA DE MIELE

Revelações podem ocorrer ao ser humano nas situações mais inusitadas. Foi só cair da varanda do apartamento e rachar o coco que Miele -cujo "fantasma" está nesta foto aqui- viu a luz: "Sim! Um show com Agildo Ribeiro e Paulo Silvino, esses dois monstros do humor indigente, juntos!". Se Costinha fosse vivo e, com Moacyr Franco, pudesse juntar-se à trupe, o evento seria um "blockbuster" maior que a reunião dos Beatles. De todo modo, pela primeiríssima vez um show será incluído nos anais (epa!) da medicina como seqüela grave de traumatismo craniano. A ciência agradece.
E HAROLDÃO DESNASCEU

Pois é, Haroldo de Campos parou com aquela história de desmorre, desnasce, desmorre e acabou desnascendo em definitivo (curiosamente, junto com Idi Amin Dadá e no mesmo dia da morte de Elvis Presley. E não me perguntem o que isso quer dizer. Imperscrutáveis são os desígnios dos deuses). Não posso mudar o que escrevi sobre ele, mas espero que seu ectoplasma concreto -um holograma, of course- não puxe meu pé enquanto durmo. Acho que Haroldão se divertirá fazendo isso com Bruno Tolentino, Wilson Martins e Ferreira Gullar. Posso dormir de luz apagada, mesmo correndo o risco de ter pesadelos com Arnaldo Antunes.

15.8.03

BLAME BAURU!

Li faz pouco que EUA e Canadá estão atribuindo um ao outro a responsabilidade pelo blecaute. Pensei que fosse o General da Banda e já ia reivindicá-lo como coisa nossa, mas me disseram que se tratava de um apagão. Ora, sendo assim, é coisa nossa do mesmo jeito: por que, até agora, todos se calam sobre a plausibilíssima hipótese do raio que caiu em Bauru? Por que ninguém reconhece essa cidade como o centro de equilíbrio das energias esotéricas do planeta? Bauruenses, vocês têm a força: não a usem para o mal. (Reparem, aliás, que o slogan no site da prefeitura é "a cidade sem limites". Tudo está contido em Bauru, desde Nova York até o sanduíche do Ponto Chic. The still point of the turning world.)

14.8.03

A ASCENSÃO FLAMEJANTE DO IDIOTA DIGITAL

Que tal promover flash mobs individuais? Pessoas em todo o planeta fazendo simultaneamente, cada qual no seu canto, alguma coisa bem cretina. Milhares de homens pondo a benga para fora e chacoalhando durante sete segundos, cronometrados, não importa onde estejam -filas de banco, reuniões do Rotary Clube, assembléias de condôminos. Milhões de pessoas abrindo as janelas e gritando para a rua a letra completa de "Paralelas", do Belchior. Multidões se trancando no quarto sem água nem comida -mas com um auditor da Price Waterhouse, para garantir a lisura do procedimento- até terminarem de ler o "Finnegans Wake".

13.8.03

POSSÍVEIS INFERNOS (D'APRÈS MAU HUMOR)

No sofá de Hebe Camargo com Otávio Mesquita, João Kléber e Daniel, o sertanejo-de-cueca. Espremido entre Roberto Avallone e Chico Lang na "Mesa-Redonda, Futebol em Debate". Na pele do personagem de John Cusack em "Quero Ser Galvão Bueno" (em inglês, "Being Galvão Bueno"). Atado a uma cadeira, sem guarda-chuva, na primeira fila de uma palestra de Maria da Conceição Tavares. Dentro de um filme do Andy Warhol. Parado num engarrafamento composto exclusivamente por picapes que tocam Max de Castro no volume máximo. Dentro de um nouveau roman. Preso, sem poder sair, num quadro do "Zorra Total". Condenado ad aeternum a ser personagem de um livro da Fernanda Iângui.
O FIM DO PLATONISMO

Naquela manhã, dona Gumercinda levantou-se da cama de um pulo. Olhou-se no espelho e não gostou do que viu. Olhou para o porta-retratos com a foto do seu casamento. Olhou para o homem com quem dormia há 40 anos e viu, pela ordem, a calva, a barba por fazer e o filete de baba pendendo do canto da boca dele. Acordou-o com um grito: "Almeidinha, você é um banana!". Se vivêssemos num mundo perfeito, Almeidinha responderia: 1) "É? Então vem aqui me descascar, meu chuchu". 2) "Sou, sim. Joga mel em cima de mim e me amassa todinho". 3) "Não, meu bem, eu sou um goiaba. Faz tempo que eu estava pra te dizer isso. Quer conhecer meu blog?" Mas sabemos que Almeidinha, que já ligou o foda-se há tempos, vai se virar do outro lado e continuar a dormir, desta vez babando na metade oriental do travesseiro. E dona Gugu, que por segundos desligara o seu "fuck off", vai ligá-lo novamente e sintonizar a TV no programa da Sônia Abrão. Felicidade é isso.
PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL

Paul Valéry (1871-1945)

"Se o sentido profundo das discussões especulativas e das polêmicas, inclusive literárias, fosse perseguido nos corações por uma análise encarniçada, não há dúvida de que encontraríamos na raiz de nossas opiniões e de nossas teses favoritas não sei que princípio de decisões implacáveis, não sei que obscura e cega vontade de ter razão pelo extermínio do adversário. As convicções são ingênuas e secretamente assassinas."

(Trecho de "Discurso sobre a História", 1932. Façam um favor a si mesmos e vão atrás das páginas em prosa de Valéry. Há edição nacional recente, "Variedades", lançada pela Iluminuras.)

12.8.03

PROJETO RESGATE DA RELEITURA 2

Drummond relido por Haroldão, o Papai Noel concretista

A releitura: "Mim-era-ação do Ou(t)ro".

A exegese: "Vejam, senhores, como eu transformei este poema de Drummond, 'Mineração do Outro', excessivamente verboso e pouco afeito à lição de Verlaine ('prends l'éloquence et tords-lui son cou'), numa obra-prima da poesia de vanguarda. Comecei por reduzi-lo ao título: para que mais? 'Contra a argúcia naturalista, a síntese', já dizia o antropófago Oswald de Andrade -influenciado por mim, pouco importando que ele tenha nascido bem antes. Percebam como a 'mineração' se desdobra em 'mim' -ou seja, eu, mas de modo oblíquo-, 'era', do verbo 'ser', e 'ação'. A 'ação', que dá a idéia de tempo presente, e o 'era', pretérito, contradizem-se dialeticamente no interior do 'mim'. E o 'outro' é e não é o 'ouro', efeito ideogramático inspirado por Ezra Pound e obtido graças a essa brilhante intercalação da letra T entre parênteses. Em suma, esta é mais uma prova de que eu sou um gênio e mereço ter meu nome bem maior que o de Homero na capa da tradução da 'Ilíada'".

9.8.03

UM MUNDO MELHOR PARA OS WECSLEYS

A Fundação Wecsley é uma ONG que se dedica à recuperação e ao acompanhamento psicológico de pessoas com nomes esdrúxulos. Em dez anos de atuação, nossos voluntários evitaram milhares de parricídios, matricídios e suicídios, tornando mais alegre a vida de milhões de Máicons, Wandergleysons e Bucetildes. Hoje, todos eles são pessoas reintegradas à sociedade e exercem plenamente sua cidadania, apesar dos risinhos de amigos e colegas. (Incluir aqui declarações testemunhais dos filhos de Pepeu Gomes e Baby do Brasil e uma breve entrevista com Tospericargerja, a principal vítima da Copa de 70.) Contribua com a Fundação Wecsley e ajude uma criança a ser feliz apesar do mau gosto hediondo de seus pais.

8.8.03

PROJETO RESGATE DA RELEITURA

Platão relido por Nelson Rodrigues

"Escuta aqui, ó Sócrates. Vê bem. O amor não é belo nem bom, compreendeste? Nem belo nem bom!" "Estás dizendo que o amor é feio e mau, Diotima?" "Espeto, Sócrates, espeto! És mesmo um cretino fundamental. Tu achas que o que não é belo tem que ser feio?" "Acho." "E quem não é sábio tem que ser burro?" "Acho." "Olha aqui: porque o amor não é bom nem belo, não significa que ele seja feio e mau. Ele está entre esses dois extremos, estás ouvindo? Entre os dois!" "Luminosa idéia, Diotima! És uma George Sand!"

(Trecho de "O Banquete Como Ele É", tragédia escrita por volta de 380 a.C. e ambientada na zona norte de Atenas. Hum, ruim essa.)

7.8.03

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL

Emílio Moura (1902-1971)

Os que não podem amar
estão cantando.
A luz é tão pouca, o ar é tão raro
que ninguém sabe como eles ainda vivem.
Os que não podem amar
estão cantando,
estão cantando
e morrendo.

Ninguém ouve o canto que soluça
por detrás das grades.


("Toada dos que não podem amar"; não consegui apurar a data.)

6.8.03

UMA CÂMERA NA MÃO E UMA GOIABA NA CABEÇA

Como as histórias de Ed Ney, o pianista-da-noite/detetive, não estão avançando, tento escrever um roteiro de filme brasileiro. Mas tenho sofrido com minhas restrições auto-impostas: não mostrar gente pelada, não escrever diálogos do tipo "eu te amo, porra", não fazer nada que se assemelhe a uma adaptação de Jorge Amado ou Rubem Fonseca, não incorporar o espírito de Sebastião Salgado e seu gosto pela miséria fotogênica. Por outro lado, também descartei a "saída Walter Hugo Khouri", que é substituir esses clichês por outros -notadamente, várias mulheres disputando, numa mansão, as atenções de um protagonista riquíssimo e entediado. A coisa está tão difícil que pensei em adaptar alguma saga nórdica: vai ser divertido escrever a cena em que Paulo César Pereio se afoga num barril de acquavit.

5.8.03

O HUMOR NO TEMPO DOS SOVIETES

“Alô, Fulano. Tudo bem? O Sicrano Stálin?” “Não, foi à biblioteca pública e está lá Lênin alguns livros.” “Pena ele não ter atendido o telefone. Eu estava louco pra passar um Trótski nele.” “Pois é. Ele tem prova amanhã, por isso se enfurnou na biblioteca. Se não estudar, a vaca vai pro Brejnev.” “Muito bom. Só acho que, além de estudar, Sicrano devia fazer um pouco de ginástica. Nunca o vi tão Gorbatchov.” “Ele gosta de correr ao ar livre, mas nem sempre é possível. Aqui, como você sabe, Khruschov muito no inverno.”
TODO O PODER À VÁLVULA HYDRA

O que eu acho encantador na arte pós-moderna é sua capacidade de dar consistência concreta a metáforas. Os juízos de valor mais adequados a ela, redutíveis a um só -"isso é uma merda"-, tornam-se pura constatação empírico-olfativa. É só pensar em Cildo Meireles e sua instalação com penicos cheios de conceitos ou, mais recentemente, no artista belga inventor da máquina de fazer cocô. Fascinante -é como se não bastasse a matéria orgânica, real e metafórica, em que estamos todos boiando. Diante disso, tenho apenas duas coisas a dizer: 1) Todo o poder à válvula Hydra, inimiga número um da arte. 2) Não façam marola, por favor.

4.8.03

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL

José Ortega y Gasset (1883-1955)

"Mi talante al mirar esta mujer es por completo distinto del que usaría un juez presuroso de aplicar el Código preestablecido, la ley convenida. Yo no conozco la ley: al contrario, la busco en la faz transeúnte. Mi mirada lleva el carácter de una absoluta experiencia. Del rostro que ante mí veo quisiera conocer qué es hermosura. Cada individualidad femenina me promete una belleza ignorada, novísima; la emoción que empuja mis ojos es la de quien espera un descubrimiento, una revelación subitánea. La expresión más exacta de la tesitura en que nos hallamos cuando, por vez primera, miramos a una mujer sería esta que parece sólo un frívolo giro galante: 'Toda mujer es guapa mientras no se demuestre el contrario'. Y aún cabría añadir: de una belleza que no hemos previsto. Verdad es que en ocasiones las promesas no se cumplen."

(De "Estética en el Tranvía", em "El Espectador", tomo I. Só Ortega conseguia, a partir do modo como os espanhóis olhavam para as mulheres no bonde, chegar a Platão e voltar. Vão lê-lo, depressa.)

2.8.03

REFAZENDO TUDO...

Bem, felizmente, não chega a ser tudo. Mas o fato é que o post que escrevi ontem e os comentários feitos no mesmo dia desapareceram no limbo (houve problemas, ao que parece, em todos os blogs ligados ao meu portal). Ainda não sei como resgatá-los desse pântano brumoso. Vou reescrever o texto -e peço desculpas aos autores dos comentários perdidos no espaço.
O MUNDO MARAVILHOSO DAS ESTANTES

Marcelo, dono do Cabide d'Ashkalsa, conta nos comentários do blog que um conhecido seu não conseguia achar o livro marxista "A Dialética do Concreto" na biblioteca de ciências humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vocês adivinharam -a obra foi parar no setor de resistência de materiais da faculdade de engenharia. Poderia estar também no meio dos Campos Brothers e Pugnetaris; eu mesmo já vi a "Gramática Expositiva do Chão", poemas de Manoel de Barros, entre os Becharas, Cegallas e Lufts à venda numa megaloja. Mas só me sentirei realizado quando, enfim, encontrar "As Flores do Mal" na estante dos livros de jardinagem. Ou "Em Busca do Tempo Perdido" na seção de auto-ajuda, entre "Quem Mexeu no Meu Queijo?" e o último do Shinyashiki.

1.8.03

CONCURSOS FICTÍCIOS

"Promoção Amazônia Legal. Mande para nós vinte tampinhas de Baré Cola e responda à pergunta: o que o Boi Garantido tem a ver com a Zona Franca de Manaus? As cinco respostas mais criativas terão como prêmio um CD duplo de Raoni interpretando os grandes sucessos de Sting. E o grande vencedor terá direito a um banho no igarapé na companhia de Zezinho do Carrapicho."