Leitor amigo, leitora amiga, aproxime-se que eu vou lhe contar uma coisa extraordinária. Sabe aquelas expressões do tipo "Fulano fechou o livro e foi viver" ou "Sicrana está lendo menos e vivendo mais", que você adora usar? Elas não têm comprovação científica.* Não existe nenhum relato sobre perda das funções vitais ou morte cerebral durante o ato de ler, mesmo quando se trata de um livro do
Carlinhos Brown irlandês. Ninguém sai da vida para entrar numa estória do Guimarães Rosa. Mais: "viver", verbo ao qual você talvez acrescente uma exclamação, é coisa de gentinha -algo que amebas e planárias fazem tão bem quanto os seres humanos, não raro melhor. Como dizia aquele personagem de
Villiers de l'Isle Adam: "Viver? Os criados farão isso por nós". Quem não tem grana para arcar com criados vive do jeito que pode. Mas que mérito há nisso? Você não acharia ridícula uma ameba cheia de si? Então.
Faz algum tempo, foi lançada no Brasil uma compilação de artigos jornalísticos de
Mario Vargas Llosa chamada "A Linguagem da Paixão". Apesar dos problemas de tradução, que não são poucos, só o primeiro texto já vale o livro. O escritor peruano conta a história de
miss Margaret Elizabeth Trask, que no início dos anos 80 deixou em testamento à Sociedade de Autores da Grã-Bretanha 400 mil libras, com a condição de que elas fossem usadas para premiar "histórias românticas". Ela mesma, Betty Trask, escreveu mais de 50 histórias assim até 1957. Morreu aos 88 anos, solteira e virgem, sem quase nunca sair de Frome, em Somerset, lugar onde fora criada. Aqui, dou a palavra a Vargas Llosa: "Quando falam de
miss Trask aos repórteres de jornais e da televisão, os vizinhos de Frome fazem caras condescendentes e sentem pena da monotonia e da tristeza que devia ser a vida daquela reclusa que jamais convidara alguém para tomar chá. Os vizinhos de Frome são uns bobos, claro (...).
Miss Trask teve uma vida maravilhosa e invejável, cheia de exaltação e aventuras. (...) Claro que evitava ter amizades e até conversações. Por que perderia seu tempo com gente tão banal e limitada como a vivente? O certo é que tinha muitos amigos; não deixaram que ela se chateasse um instante em sua modesta casinha de Oakfield Road e nunca diziam alguma coisa boba, inconveniente ou chocante. (...) O que muitos crêem ser uma extravagância -seu testamento- é uma severa advertência contra o odioso mundo que lhe coube e que deu um jeito de não viver".
Em resumo, caro leitor: se você quer gente de verdade, vá à ficção. O mundo está repleto de seres intoleravelmente unidimensionais.
* Sim, sei que "comprovação científica" é um argumento de larga aceitação entre filisteus.
Et pour cause.