31.8.05

Bentinho e o silêncio dos inocentes

Agradeço ao Janer Cristaldo pela graça alcançada. Estou pronto para entregar ao burro-sem-rabo toda a minha coleção de Machadinhos porque, tendo morrido 25 anos depois de Carlos Marques, ele não dedicou uma mísera linha à condenação do comunismo em seus romances e contos. Vão de roldão Huysmans e Henry James, outros dois que fizeram boca-de-siri, preferindo escrever sobre sodomitas decadentes e mocinhas americanas abonadas no Velho Mundo. Todos coniventes, sujeitos que calaram e consentiram: fizeram de propósito, por saber que só assim seriam louvados pelos acadêmicos de um século depois (de fato, mesmo retroativamente, qualquer pessoa decente devia se esfregar com palha de aço depois de ser elogiada por Roberto Schwarz). Nenhum deles se compara ao doidjão Qorpo-Santo, que, além de prever a maré vermelha, ainda possuía a excelsa virtude de ser gaúcho -capaz de anular tanto sua monumental chatice quanto o fato de ser, ele mesmo, uma invenção de acadêmicos.

Mesmo triste pela implosão das ilusões, fico feliz em perceber que Cristaldo aprendeu a usar o Gúgol e checou direitinho a data da morte de Marques (1883). Ele ainda não sabe fazer contas: seu artigo ensina que 1883 + 24 = 1917 e informa que da morte de Qorpo-Santo, em 1883, à de Machado, em 1908, 15 anos se passaram. Em compensação, já não puxa a orelha de santo Agostinho por não ter criticado a Inquisição. É um progresso.

30.8.05

A Irlanda é uma paisagem sem sacys

Nunca entendi afro-brasileirinhos de ambos os sexos que babam pela Irlanda. Aquilo lá é um Maranhão da Europa. Prova-se isso, sem dar margem a contestações, quando notamos que o número de irlandeses chamados Paddy, em homenagem a são Patrício, é proporcionalmente equivalente ao de maranhenses batizados como José Ribamar, com ou sem "de" no meio, por obra e graça do santo homônimo. Irlandeses são maranhenses com primos em Noviorque, inverno rigoroso, Yeats e Chieftains no lugar de parentes em Sumpaulo, insolação, Sarney e bumba-meu-boi. Ou seja, gente tão sem suingue e manemolência que precisa encher a cara de Guinness para ver graça na vida -e, para arrematar, ainda acha que Giacomo Joyce, esse Zeca Baleiro metido a besta, é escritor. Façavor. Não troco tudo isso por meio cedê da Alcione.

29.8.05

O que entendo por auto-ajuda

É este bonito poema do cummings. Ele ensina que nem a morte é uma boa razão para que a gente desista dos nossos sonhos. Muito melhor que aquele papo de não comer lentilhas do falso Borges.

nobody loses all the time

i had an uncle named
Sol who was a born failure and
nearly everybody said he should have gone
into vaudeville perhaps because my Uncle Sol could
sing McCann He Was A Diver on Xmas Eve like Hell Itself which
may or may not account for the fact that my Uncle

Sol indulged in that possibly most inexcusable
of all to use a highfalootin phrase
luxuries that is or to
wit farming and be
it needlessly
added

my Uncle Sol's farm
failed because the chickens
ate the vegetables so
my Uncle Sol had a
chicken farm till the
skunks ate the chickens when

my Uncle Sol
had a skunk farm but
the skunks caught cold and
died and so
my Uncle Sol imitated the
skunks in a subtle manner

or by drowning himself in the watertank
but somebody who'd given my Uncle Sol a Victor
Victrola and records while he lived presented to
him upon the auspicious occasion of his decease a
scrumptious not to mention splendiferous funeral with
tall boys in black gloves and flowers and everything and

i remember we all cried like the Missouri
when my Uncle Sol's coffin lurched because
somebody pressed a button
(and down went
my Uncle
Sol

and started a worm farm)

26.8.05

Getúlio Vargas cagou aqui

Crédito onde é devido: a frase do título é do Pedro Ivo "Loser" Resende, blogueiro de uma época anterior à batalha do Marne e Millôr cover talvez contra voglia (O loser, where art thou?). Fora do contexto em que ele a escreveu, explica quase tudo e, por isso, é minha nova candidata àquela faixa branca no meio da bandeira do Bananão. Existe há anos como lema subliminar -claramente, é o que se ouve quando tocamos "já podeis da pátria filhos" ao contrário-, mas não custa deixar claro. Outra proposta para o próximo milênio é substituir nosso hino pelo clássico "peguei, mijei, chacoalhei, guardei", com o qual poderemos expressar muito melhor nosso entusiasmo por ser brasileiros. Pensem na seleção, perfilada e de mão no peito, cantando o "pim-pim-piririm-pim-pim". Instrui, diverte e dá menos trabalho para decorar.

25.8.05

Drunk 'n' wild

O Ceará tem o maior tonel de madeira do mundo. Fica no Museu da Cachaça, em Maranguape (terra natal de Chico Anysio, pai de Diogo Mainardi), e tem capacidade para 374 mil litros da mardita. Hmmmm. Visualizem o Efelentífimo, embevecido, admirando a arquitetura do tonel, "muito maiff bonito do que aquela boffta de paláffio do Niemeyer". Imaginem que coisa bonita o brilho nos olhos dele quando pensa -e sabemos que ele só pensa nisso, o tempo todo- em transformar o tonel num parque aquático como o Wet 'n' Wild, cheio de sinuosos tobogãs que conduzem a um refrescante mergulho no mar de cachaça. Brincadeira de criança, como é bom, como é bom, bom é ser feliz com o Moluscão.

24.8.05

O triunfo da vontade

E eis que Baiano Meloso, enfim, conseguiu se tornar Trip Girl. Eu acho isso uma coisa linda. É a prova de que nada impede alguém de concretizar, ou concretinizar, seus sonhos, ou os do Peninha -nem mesmo o fato de ser uma bicha flácida de 63 anos. Torço para que o próximo passo seja um bem-sucedido ensaio para a revista Griátrica: quem sabe Meloso abrace sua verdadeira vocação, por trás, e pare de gravar. À quelque chose malheur est bon. Ou não.

Atualização: para compensar a visão do inferno a que submeti meus leitores, coloco aqui uma foto da Marie Laforêt. Porque sim.

Uma pausa para minha imitação de Camões

;)

23.8.05

Goiaba Jazz Gallery (bônus)

Atendendo ao pedido do Alexandre nos comentários lá embaixo (yes, sir, we get requests), reabro minha lojinha de jazz e similares para oferecer ao distinto público duas músicas do Chairman of the Board. Ambas fazem parte daquela safra excepcional de álbuns que Sinatra gravou para a Capitol nos anos 50, com arranjos de Nelson Riddle (eventualmente, Gordon Jenkins ou Billy May); não chegam a ser desconhecidas, mas estão bem longe da vulgaridade das coisas que viraram tema de programa do Atayde Patreze. E ambas são de Matt Dennis, compositor batuta, mais um exemplo de gente-boa-porém-não-tão-reconhecida-quanto-deveria-ser.

Clicando na primeira nota, você ouvirá "Everything Happens to Me", composta por Dennis e Tom Adair, que parece escrita -como já citei, sem som, aqui- por um Charlie Brown adulto. Ela está em "Close to You and More" (1957), lindo disco em que Sinatra é acompanhado apenas por um quarteto de cordas, o Hollywood String Quartet, com uma ou outra pitada orquestral, bem leve, de Nelson Riddle. Clicando na segunda, você ouvirá "Angel Eyes", de Dennis com Earl Brent, que está em "Only the Lonely" (1958), o disco-de-fossa para acabar com todos os discos-de-fossa (é minha faixa favorita desse álbum, aliás -tão bem interpretada que não consigo ouvi-la sem imaginar uma espécie de clipe noir). Vamos lá, esconda os instrumentos perfurocortantes e som na caixa.











As letras, como sempre, estão aqui.

1.

Black cats creep across my path
Until I'm almost mad
I must have roused the Devil's wrath
'Cause all my luck is bad

I make a date for golf and you can bet your life it rains
I try to give a party, but the guy upstairs complains
I guess I'll go through life just catchin' colds and missin' planes
Everything happens to me

I never miss a thing, I've had the measles and the mumps
And every time I play an ace, my partner always trumps
I guess I'm just a fool who never looks before he jumps
Everything happens to me

At first my heart thought you could break this jinx for me
That love would turn the trick to end despair
But now I just can't fool this head that thinks for me
I've mortgaged all my castles in the air

I've telegraphed and phoned, sent an Air Mail Special too
You answer was "goodbye", and there was even postage due
I fell in love just once and then it had to be with you
Everything happens to me
Everything happens to me


2.

Hey, drink up, all you people
And order anything you see
Have fun, you happy people
The drink and the laugh's on me

Try to think that love's not around
Still it's uncomfortably near
My old heart ain't gainin' any ground
Because my angel eyes ain't here

Angel eyes that old Devil sent
They glow unbearably bright
Need I say that my love's misspent
Misspent with angel eyes tonight

So drink up, all of you people
Order anything you see
And have fun, you happy people
The drink and the laugh's on me

Pardon me, but I gotta run
The fact's uncommonly clear
I gotta find who's now the number one
And why my angel eyes ain't here

'Scuse me while I disappear...

22.8.05

Os mestres trocadilheiros de Edimburgo

Trocadilhos têm um caráter ascético -dependendo do caso, acético ou asséptico- que costuma passar despercebido. Maldizê-los é blasfêmia, conforme já escrevi aqui; em defesa da dignidade da prática, Millôr confirma que o referido é verdade e dá fé ("o cristianismo está todo fundado num trocadilho. O trocadilho foi a verdadeira graça de Deus"). Embora seja spur of the moment, a prática constante pode conduzir a epifanias. O som dos Sparks nunca me atraiu muito, mas só posso admirar trocadilhistas que, após coisas horrendas como o nome-de-LP "Kimono My House", atingiram o sublime em "Angst in my Pants" . A música nem precisava existir -bastava o título. Só é de bom-tom saber quando parar. Do contrário, neguinho vira-vira lobisjoyce, vira-vira-vira.

19.8.05

Pequena antologia goiabal

Óssip Mandelstam (1891-1938)

For the sake of delight
Take from my hands some sun and some honey,
As Persephone's bees enjoined on us.

Not to be untied, the unmoored boat;
Not to be heard, fur-shod shadows;
Not to be silenced, life's thick terrors.

Now we have only kisses,
Like little furry bees,
Which perish when they fly from the hive.

They rustle in transparent thickets
In the dense night forest of Taigetos,
Nourished by time, by honeysuckle and mint.

For the sake of delight, then, take my uncouth present:
This simple necklace of dead dried bees
That turned honey into sun.


(De 1920, na tradução de James Greene em "Selected Poems".)

18.8.05

Traições tradutórias

Retorno a Alcofribas Nasier, extrator da quinta-essência. O francês fescenino é responsável indireto por uma das melhores demonstrações de que se deve desconfiar de toda tradução -e de que essa desconfiança não importa se a versão for boa. No Livro Primeiro de "Gargântua e Pantagruel", capítulo 25, há uma troca de insultos entre os vendedores de bolo de Lerné e os do país de Gargântua (que utilidade tem isso para a trama? Absolutamente nenhuma, é só for the fun of it. Aliás, o livro é todo assim). O original, em francês quinhentista, é o seguinte: "Les fouaciers (...) les oultragerent grandement, les appelans trop diteulx, breschedens, plaisans rousseaulx, galliers, chienlictz, averlans, limes sourdes, faictneans, friandeaulx, bustarins, talvassiers, riennevaulx, rustres, challans, hapelopins, trainneguainnes, gentilz flocquetz, copieux, landores, malotruz, dendins, baugears, tezez, gaubregeux, gogueluz, claquedans, boyers d'etrons, bergiers de merde, et aultres telz epithetes diffamatoires".

Vocês contaram? São 28 xingamentos. O bom tradutor de Rabelais para o português, provavelmente cansado das enumerações, decidiu parar no décimo-sexto: "Os vendedores (...) ultrajaram grandemente os outros, chamando-os de parlapatões, desdentados, ruços pacóvios, vagabundos, caga-na-cama, brutamontes, marotos, desordeiros beberrões, fanfarrões, vilões, patifes, ladrões, cretinos, gente sem eira nem beira, boiadeiros de bosta e pastores de merda, e outros epítetos difamatórios". Por sua vez, sir Thomas Urquhart (1611-1660), em sua versão para o inglês, preferiu aumentar por conta própria o total de impropérios. Vejam que beleza: "The bunsellers or cakemakers (...) did injure them most outrageously, calling them brattling gabblers, licorous gluttons, freckled bittors, mangy rascals, drunken roysters, sly knaves, drowsy loiterers, slapsauce fellows, slabberdegullion druggels, lubbardly louts, cozening foxes, ruffian rogues, paultry customers, sycophant-varlets, drawlatch hoydens, flouting milksops, jeering companions, staring clowns, forlorn snakes, ninny lobcocks, scurvy sneaksbies, fondling fops, base loons, saucy coxcombs, idle lusks, scoffing braggards, noddy meacocks, blockish grutnols, doddipol joltheads, jobbernol goosecaps, foolish loggerheads, flutch calf-lollies, grouthead gnat-snappers, lob-dotterels, gaping changelings, codshead loobies, woodcock slangams, ninnie-hammer fly-catchers, noddie-peak simpletons, and other suchlike defamatory epithets".

Sem dúvida a segunda tradução, exagerada e excessiva, é a melhor graças ao excesso e ao exagero, que a fazem ainda mais rabelaisiana que Rabelais; traidora da letra, mas fidelíssima ao espírito. Quanto à versão em português, os lusofalantes, sobretudo de aquém-mar, talvez argumentem que escrever dá trabalho e pensar cansa. Melhor se deixar ficar molemente no meio do caminho, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais.

17.8.05

Morte, esse corta-barato do "casting director"

Sacanagem o Francisco Milani ter morrido sem interpretar o "homem do subsolo" dostoievskiano. Parece um papel escrito sob medida. Aliás, pegue um personagem do Milani, transfira-o para São Petersburgo, afogue-o em vodca e misticismo e subtraia o humor: você obterá pelo menos metade da população dos livros do Dostoiévski. De todo modo, como escrevi por aqui, ainda mais chato é o Costinha já ter chutado o balde. Estou convicto de que era nele que Kafka pensava ao escrever sobre o desditoso Josef K.

16.8.05

Do novíssimo dicionário Uai's

Direitista, s. 2g. 1. Que ou quem defende o Estado mínimo, estritamente limitado à distribuição gratuita de perucas. 2. Que ou quem se vale de argumentos ad perucam para defender o capitalismo. 3. Que ou quem integra portais internéticos reacionários e retrógrados que servem de fachada para o tráfico internacional de perucas. 4. Peluqueiro. (Não se diga jamais que somos incoerentes. Todos sabem: há tempos cultuamos a peruca da mãe de Deus. Ella Fitzgerald é nossa rainha, e Ivon Curi, nosso rei. Além disso, PC Valério comprova a equação: mais peruca, menas corrupção. Agora, cantemos todos com Jorge Ben Jor.)

Olha a peruca, olha o peluqueiro
Olha a peruca, olha o peluqueiro
Eu trago perucas pra vender
Perucas de todas as qualidades, quem vai querer?
Olha a peruca na-nanica, olha a peruca ma-maçã-ã
Olha a peruca ouro, olha a peruca pra-ta
Olha a peruca da terra, figo São Tomé
Olha a peruca d'água

Eu sou um menino que precisa de dinheiro
Mas pra ganhar de sol a sol eu tenho que ser peluqueiro
Pois eu gosto muito de andar sempre na moda
E pro meu amor puro e belo eu gosto de contar as minhas prosas

O mundo é bom comigo até demais
Pois vendendo perucas eu também tenho meu cartaz
Pois ninguém diz pra mim que eu sou um pária no mundo
Ninguém diz pra mim "vai trabalhar, vagabundo"

Mãe, mãe, mãe -eu vendo perucas, mãe
Mãe, mãe, mãe -mas eu sou honrado, mãe

15.8.05

Humor anal e o melhor do Carnaval

"-Eu, respondeu Gargântua, por longa e curiosa experiência, inventei um meio de me limpar o cu, o mais senhorial, o mais excelente, o mais expediente que jamais foi visto. -Qual? disse Grandgousier. -Vou contar como foi, disse Gargântua. Limpei-me uma vez com uma meia máscara de veludo de uma moça, e achei bom, pois a maciez de sua seda me causou uma voluptuosidade bem grande no traseiro. Uma outra vez com um véu, e foi a mesma coisa. (...) Com um gorro de pajem, bem emplumado à suíça. Depois, andando atrás de uma moita, encontrei uma marta e me limpei com ela, mas as suas unhas me feriram todo o períneo. Logo que me curei, no dia seguinte, limpei-me com as luvas de minha mãe, bem perfumadas de benjoim. Depois me limpei com feno, aneto, manjerona, rosas, folhas de abóbora, de couve, de beterraba, de parreira, de alface e de espinafre. (...) Depois, limpei-me com os lençóis, as cobertas, a cortina, uma almofada, um tapete, um outro tapete verde, uma toalha de mesa, um guardanapo, um lenço e um penhoar. Em tudo achei prazer, mais do que em coçar uma sarna. (...) Limpei-me com feno, palha, crina, lã, papel, mas 'sempre os culhões arranha, com certeza/ quem com papel do cu faz a limpeza'. (...) Depois, disse Gargântua, eu me limpei com um gorro, um chinelo, uma bolsa, um cesto, mas que limpa-cu desagradável! Depois com um chapéu. Mas vê que os chapéus são uns lisos, outros peludos, outros aveludados, outros de tafetá, outros de cetim. O melhor de todos é o peludo, pois faz boa absorção da matéria fecal. Depois, eu me limpei com uma galinha, um galo, um frango, um couro de boi, uma lebre, um pombo, um alcatraz, uma pasta de advogado, uma touca.

Mas, concluindo, digo e sustento que não há limpa-cu igual a um ganso novinho, bem emplumado, contanto que se mantenha a cabeça dele entre as pernas. E pode acreditar, palavra de honra. Pois a gente sente no olho do cu uma volúpia mirífica, tanto pela maciez das penas como pelo calor temperado do ganso, a qual é facilmente comunicada ao cano de cagação e a outros intestinos, até chegar à região do coração e do cérebro. E não penses que a beatitude dos heróis e semideuses, que estão nos Campos Elísios, esteja no abrótano, na ambrosia ou no néctar, como dizem estas velhas. Está, segundo penso, em limparem o cu com um ganso novo. Esta é a opinião de Mestre Jehan da Escócia."

(François Rabelais, 1490-1553, santo padroeiro deste blogue, em "Gargântua e Pantagruel", tradução de David Jardim Júnior. "Antes de ler", diz um amigo, "achava que Rabelais era coisa nobre, solene, de pôr na estante ao lado da 'Divina Comédia'. Hoje, acho que ele era o Hermes-e-Renato da França renascentista." Subscrevo.)

14.8.05

Vá pra Porto Alegre, tchau

Se for mesmo, dê uma passada no lançamento do livro do Pellizzari, amanhã à noite. Se não for, como eu -o senhor Burns se recusa a soltar a bola de ferro do meu tornozelo-, você, que curte um gnosticismo festivo, pode adquirir a obra aqui. E aqui também.

13.8.05

Goiaba Jazz Gallery

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Algumas das gentes que escrevem sobre jazz (em geral, as mais ignorantes, sobretudo musicalmente) acham que os únicos jazzistas interessantes são aqueles que tiveram uma vida de merda, com drogas e álcool aos montes, prostituição, cara-lambida-por-cachorro-na-sarjeta e morte prematura. Ou seja, tudo que eles considerem justificar o uso daquele clichê particularmente hediondo, "Fulano lutou contra seus demônios interiores". É como se, de alguma maneira misteriosa, só quem passou por tudo isso -inclusive, como profecia auto-realizável, morrer cedo- conseguisse fazer arte-de-verdade. (Como é que aqueles canalhas que têm uma vida longa e próspera ainda querem fazer algo que não seja arte-de-mentira? Audácia da filombeta.) Charlie Parker e Billie Holiday, para mencionar só os dois exemplos mais comuns, não seriam geniais apesar de todos os seus problemas, com a força que tiveram para, por instantes, superá-los, mas graças a eles. Para esses morons, portanto, ninguém mais desinteressante que Clifford Brown (1930-1956), cuja vida foi o que biógrafos viadinhos de celebridades chamariam uneventful -exceto, talvez, pelo fato de ele ter morrido aos 25 anos em um acidente de carro.

Quem gosta de música, no entanto, só pode lamentar que Brown não tenha vivido e gravado por muito mais tempo. No escasso tempo que lhe coube, ele já conseguiu ser um dos grandes trompetistas da história do jazz; vivesse mais, teria sido o maior desafiador da hegemonia de seu contemporâneo Miles Davis, ao qual era superior tecnicamente (o gênio de Davis, que estava em outras coisas, parece ter sido eletrocutado quando ele achou, no fim dos anos 60, que jazz-roque e roupas de cafetão eram uma boa idéia). Seus principais discos são os do quinteto co-liderado por outro monstro-sagrado-do-jazz, o baterista Max Roach (ainda vivo e chutando); em seus últimos meses, o grupo contou com mais uma entidade mitológica, o sax-tenorista Sonny Rollins (também still alive and well). Mas todos os outros -incluindo o inevitável LP-com-arranjos-de-cordas, os discos gravados com o quinteto de Art Blakey (ainda não batizado de Jazz Messengers) e mesmo aqueles em que Brown só acompanhou Sarah Vaughan, Dinah Washington e Helen Merrill- são igualmente recomendadíssimos.

Cliquem nas notas abaixo para ouvir dois exemplos dos diferentes estilos do trompetista. A primeira música (que está em "At Basin Street", de 1956, com Roach e Rollins) é uma versão hard bop, acelerada, de um clássico de Cole Porter, "What Is This Thing Called Love?". A segunda, do "Memorial Album" (capa aí no alto), gravada três anos antes, é uma balada, a bonita "Easy Living", de Leo Robin e Ralph Rainger. Som na caixa -e divirtam-se, crianças.






12.8.05

Breve interlúdio vulgar 2

Vocês imaginavam alguém como este colunista escrevendo -e publicando- uma frase como "até a tropa de choque collorida tinha mais ética" em referência aos petelhos, donos da ética até ontem?

Nem eu. Viver para ver tudo isso é mighty fun -por que negar? Vale a pena até reproduzir a foto abaixo, com nova legenda.

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"Tudo era apenas uma brincadeira e foi crescendo, crescendo, me absorvendo..."

10.8.05

Goiaba Jazz Gallery

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Foi necessário um filme meio xaroposo com Clint Eastwood e Meryl Streep ("As Pontes de Madison", de 1995) para que algo semelhante a sucesso começasse a acontecer com Johnny Hartman (1923-1983) -um pouco tarde, 12 anos depois de sua morte. Good old Clint nem sempre acerta a mão em seus filmes, è vero, mas quando o assunto é jazz ele atira com precisão de personagem de filme do Sergio Leone. John Maurice Hartman foi um dos melhores cantores que o gênero produziu. Barítono freqüentemente comparado a Billy Eckstine, Hartman era mais suave na abordagem: restringia o uso do vozeirão ao estritamente necessário, sabia criar climas, aproveitar ao máximo as nuances e sugestões de uma letra. Interpretar, enfim. Comparações são sempre misleading, mas talvez se possa defini-lo como alguém entre Eckstine e Sinatra. Não é pouca coisa -e não é exagero.

Com todo esse talento, porém, Hartman gravou relativamente pouco em seus quase 40 anos de carreira. Começou cantando com bambas, nos années quarante: Earl Hines, Dizzy Gillespie, Erroll Garner. Mas, até o início dos anos 60, os dedos de uma mão davam e sobravam para contar seus álbums (o melhor deles é "Songs from the Heart" , de 1955, com Howard McGhee no trompete). A história mudou quando John Coltrane, já monstro-sagrado-do-jazz e querendo mostrar que sabia "tocar bonito" de modo convencional, convidou-o para um disco. O resultado foi "John Coltrane and Johnny Hartman" (1963), obra-prima nunca assaz louvada e única vez em que Coltrane e seu "classic quartet" acompanharam um cantor. Depois, Hartman se cercou de grandes músicos em outro álbum clássico, "I Just Dropped By to Say Hello" (1964, capa aí em cima) -e passou a ser tratado por gravadoras e donos de clubes como um cantor de prestígio, mas "não-comercial". Seguiram-se várias tentativas, mais ou menos bem-sucedidas, de soar "comercial" e anos depois, já perto do fim de sua vida, outro grande disco, "Once in Every Life" (1980), de onde foram extraídas quase todas as músicas das trilhas sonoras de "As Pontes de Madison".

É claro que ninguém precisa assistir ao filme para conhecer a obra de Johnny Hartman. Se você ficou interessado e quer amostras, tio Ruy faz isso para você. Clique nas notas aí embaixo para ouvir, pela ordem: 1) A melhor versão ever de "Lush Life" (bela música e letra genial, coleporteriana, de Billy Strayhorn), do disco com Coltrane. 2) "Ain't Misbehavin'", clássico de Fats Waller e Andy Razaf, que está no "Songs from the Heart". Espero que gostem. Quem quiser saber mais sobre o cantor pode clicar aqui ou aqui.











E aqui, como sempre, estão as letras, para aqueles que gostam de seguir a bolinha (epa, opa).

1.

I used to visit all the very gay places
Those come-what-may places
Where one relaxes on the axis of the wheel of life
To get the feel of life from jazz and cocktails

The girls I knew had sad and sullen gray faces
With distingué traces
That used to be there -you could see where they'd been washed away
By too many through the day twelve o'clock tales

Then you came along with your siren song
To tempt me to madness
I thought for awhile that your poignant smile
Was tinged with the sadness
Of a great love for me
Ah, yes, I was wrong
Again, I was wrong

Life is lonely again
And only last year everything seemed so sure
Now life is awful again
A trough full of hearts could only be a bore

A week in Paris could ease the bite of it
All I care is to smile in spite of it
I'll forget you, I will
While yet you are still burning inside my brain

Romance is mush stifling those who strive
I'll live a lush life in some small dive
And there I'll be while I rot with the rest
Of those whose lives are lonely too


2.

No one to walk with, all by myself
No one to talk with, I'm happy on the shelf
Ain't misbehavin', savin' my love for you

I know for certain the one I love
I'm through with flirtin', it's you I'm thinkin' of
Ain't misbehavin', savin' my love for you

Like Jack Horner, sittin' in the corner
Don't go nowhere, what do I care
Your kisses are worth waitin' for
Why don't you believe me?

I don't stay out late, don't care to go
I'm home at eight, me and my radio
Ain't misbehavin', savin' all my love for you

8.8.05

Goiaba Jazz Gallery

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Mais um exemplo de gente que precisou mudar de nome para ser jazzista? Pois não. Esse senhor aí da foto, Paul Emil Breitenfeld (1924-1977), transformou-se em Paul Desmond, o homem que tentava -e conseguia- fazer seu sax alto soar como um dry martini. Desmond ficou famoso como saxofonista do Dave Brubeck Quartet (no qual tocava desde a Guerra da Criméia, segundo ele mesmo escreveu na contracapa de um de seus LPs) e, sobretudo, como autor de um dos temas mais facilmente reconhecíveis do jazz, "Take Five" (clique aqui para ouvir uma amostra no site "All Music Guide"). Seus discos solo, menos conhecidos, também são excelentes. Afinal, esse é o instrumentista que Charlie Parker apontava como seu "alto player" favorito -no small compliment.

Há muitas histórias boas sobre Desmond, o "homem mais solitário do mundo", nas palavras do crítico, versionista de bossa nova e biógrafo pouco confiável Gene Lees. Conta-se que começou a escrever, mas não chegou a publicar, as memórias de seu período com Brubeck, cujo título era inspirado por uma pergunta feita freqüentemente por aeromoças ("How Many of You Are There in the Quartet?"). Diz-se que, nas apresentações ao vivo de "Take Five", o saxofonista saía do palco e ia ler um livro durante o solo de bateria de Joe Morello. Sobre o fato de ter sido solteiro quase toda a vida, ele respondia parafraseando Eliot: "Sometimes [women] go around with guys who are scuffling -for a while. But usually they end up marrying some cat with a factory. This is the way the world ends, not with a whim but a banker". Quando, pouco antes de sua morte -três maços de cigarro diários se transformaram num câncer do pulmão-, Charles Mingus foi visitá-lo, usando uma capa negra, Desmond achou que ele lembrava o personagem da Morte em "O Sétimo Selo". Sorriu e disse: "OK, set up the chess board".

Para além de todas essas histórias, claro, há a música. Foi dificílimo fazer uma seleção, mas optei por duas músicas extraídas de discos solo de Desmond, sem o Dave Brubeck Quartet. A primeira é uma linda versão with strings de "My Funny Valentine", que está no disco "Desmond Blue" (1961), fortemente inspirado pelas gravações de Charlie Parker com orquestra de cordas. A segunda é "Hi-Lili, Hi-Lo" -aquela mesma do filme com Leslie Caron-, de "Glad to Be Unhappy" (LP de 1965 que tem por subtítulo "torch songs 'sung' by sax"), com Jim Hall na guitarra. Enjoy.






5.8.05

Breve interlúdio vulgar

Mais mamado do que nunca, o Efê agora se compara a Getúlio Vargas. Digam a ele que a comparação perfeita requer o tiro no peito: só "tiros no pé", mesmo 20 vezes por discurso, não bastam.

3.8.05

Goiaba Jazz Gallery

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Houve um tempo em que era impensável alguém usar um nome como Arnold Schwarzenegger e ter chances de sobrevivência no showbiz (termo que inclui, ça va sans dire, a política). A nova-iorquina filha de croatas Jelena Ana Milcetic (1930 - ) certamente sabia disso quando, no início de sua longa carreira, decidiu se transformar em Helen Merrill. É raro que alguém se lembre de Merrill quando pensa em "grandes cantoras de jazz", expressão que costuma ficar restrita, injustamente, à santíssima trindade Ella-Billie-Sarah; nem ela, longe dos Euá por longos períodos, obteve algo remotamente parecido com sucesso no nível de Sinatra ou Nat King Cole. Os músicos, porém, sempre souberam que miss Merrill batia um bolão. A lista dos que a acompanharam é quase uma história concisa do jazz da década de 40 em diante: Charlie Parker, Miles Davis, Bud Powell, Earl Hines, John Lewis, Stan Getz, Clifford Brown, Bill Evans e uma extensa lista de etcéteras. Foi ela que, em 1956, tirou Gil Evans da semi-obscuridade, antes que o arranjador gravasse três dos melhores discos de Miles Davis; e foi para ela que Evans fez, em 1987, um de seus últimos trabalhos.

No fim dos anos 60, em parceria com o pianista Dick Katz, Merrill gravou suas prováveis obras-primas: "The Feeling Is Mutual" e "A Shade of Difference". Cercada, mais uma vez, por craques (os irmãos Thad e Elvin Jones, Jim Hall, Ron Carter, Richard Davis), ela fez dois álbuns tão imunes ao sarampão roqueiro da época quanto inovadores na escolha do repertório e nos arranjos: até hoje, raras são as cantoras que se aventuram por territórios como o do free jazz de Ornette Coleman ("Lonely Woman"). Mesmo cavalos-de-batalha do tipo "My Funny Valentine" soam diferentes, novos; nesse caso, o arranjo não é mais que um bate-bola improvisado entre Merrill e o baixo de Ron Carter. E nos dois discos há, sobretudo, beleza -a rare thing, mes semblables, mes frères. Divido um pouco dessa boniteza com vocês nas duas músicas que pus aí embaixo, ambas do "A Shade of Difference", ambas compostas pelo grande (e menos conhecido do que merecia) Alec Wilder: "While We're Young" e "Where Do You Go?". Peçam silêncio às coisas em volta, ao mundo barulhento, e ouçam.











Aqui vão, como de costume, as letras das músicas.

1.

Songs were made to sing while we're young
Every day is Spring while we're young
None can refuse, time goes so fast
Too dear to lose and too sweet to last
Though it may be just for today
Share our love we must while we may
So blue the skies, all sweet surprise
Shines before our eyes while we're young


2.

Where do you go when it starts to rain?
Where will you sleep when the night time comes?
What do you do when your heart's in pain?
Where will you run when the right time comes?
These are the things that I want to know
Where will you hide when the lights are low?
Where do you go when it starts to rain?
Where will you sleep when the night time comes?

1.8.05

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John Herndon Mercer (1909-1976), our huckleberry friend, é justamente reconhecido como um dos maiores letristas de música popular do século 20. Fundador da gravadora Capitol, ele escreveu letras (ou letra e música) para cerca de 1.500 canções. Como sói acontecer com gente prolífica, nem tudo é bom, mas o melhor está no nível de Cole Porter ou Ira Gershwin. Graças a duas parcerias com Harold Arlen, hoje clássicas, "Blues in the Night" e "One for My Baby (and One More for the Road)", Johnny Mercer talvez seja mais lembrado como um compositor-de-músicas-de-fossa -e o fato de essas duas estarem num dos melhores discos-de-fossa de Frank Sinatra, "Only the Lonely", ajuda muitíssimo.

Mas o que Mercer fazia como ninguém, in my humble opinion, eram músicas-de-vingança, diante das quais Lupicínio "você há de rolar como as pedras que rolam na estrada" Rodrigues não passa de um cantor de amenidades. Os melhores exemplos são "Goody Goody" -sucesso daquele sósia do Boris Casoy, Benny Goodman, depois regravado por uma porção de gente- e, principalmente, "I Wanna Be Around", mistura única de wit e rancor. O segundo elemento quase desaparece na interpretação mais conhecida, a de Tony Bennett, mas está bastante presente numa das versões mais inusitadas: a de James Brown no seu segundo disco "Live at the Apollo", de 1968. O Soul Brother Number One transforma "I Wanna Be Around" numa soul ballad, com violinos cafonas em pizzicato -e fica lindjo, de verdade. Confiram clicando na nota aí embaixo.






Aqui vai a letra, para quem quiser seguir.

I wanna be around to pick up the pieces
When somebody breaks your heart
Somebody twice as smart as I
Somebody who will swear to be true
Like you used to do with me
Who'll leave you to learn that misery loves company
Wait and see, wait and see
I wanna be around to see how he does it
When he breaks your heart to bits
Darling, let's see if the puzzle fits so fine
That's when I'll discover that revenge is sweet
And sit there applauding from a front row seat
When somebody breaks your heart like you broke mine
That's when I'll discover that revenge is sweet
When somebody breaks your heart like you broke mine