29.9.04

A volta do cãozinho triperne

No embalo do saci, recordemos o único tema literário que realmente importa. Para quem já não se lembra, os exercícios de estilo anteriores estão aqui, aqui e aqui. Segue mais um autor psicografado; muito prazer, meu nome é Zâmbia Vaporetto.

* Manuel Bandeira

Quando eu tinha seis anos, lá no Recife,
Ganhei um cachorrinho sem uma das pernas.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho não fazia xixi sem desabar no chão!
Era um cachorrinho namorador
Raquítico
Sifilítico.
A única criatura fina na pensãozinha burguesa.

- O meu cãozinho perneta foi a minha primeira namorada
Foi o meu primeiro alumbramento.
Hoje ele está deitado
Está dormindo
Profundamente.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Cão morto, cão morto, cão morto!

25.9.04

Manual do perfeito perneta latino-americano

Leio suplementos infantis, como a Folhinha, sempre que me canso do excesso de infantilidade nos cadernos de política, economia e cuRtura. O problema é que, às vezes, o caderno-mirim inadvertidamente expõe a criançada a material X-rated. Hoje, por exemplo, há nele entrevista com uma integrante da Sociedade dos Observadores de Saci, aqueles pervertidos voyeurs de deficientes. Felizmente, a entrevistada não entra em detalhes sobre esse abominável vício e até fornece algumas informações bastante interessantes. A principal delas: o saci é paraguaio. Trata-se de uma criação dos guaranis (que o chamavam de çaa cy perereg) e, nesse início de carreira, era índio e tinha as duas pernas. Virou negro, perneta e brasileiro graças ao brilhante trabalho de transcriação feito pelas escravas africanas (chupa essa, Haroldão), passando a ser duplamente beneficiado pelas futuras leis de cotas.

Depois dessa revelação, revi meus conceitos. Estou plenamente disposto a lutar pelo saci contra o imperialismo do Ralouim. Ele prova, em primeiro lugar, que todos os brasileiros são paraguaios não-assumidos, guaranis no armário, índias de sangue tupi que têm o cheiro da flor (a propósito, é necessário organizar uma Parada do Orgulho Guarani, que com a presença de Perla atrairá também muitos freqüentadores da parada gay). Em segundo, está confirmado que nada simboliza melhor a identidade latino-americana do que um deficiente físico: o Mercosul pula, pula, pula numa perna só e vai largando brasa no cachimbo da vovó.

(Idéia grátis para quem quiser colocá-la em prática: a gravação de um CD-tributo ao Dia do Saci, a ser lançado em 31 de outubro. Aposto que fará tanto sucesso quanto os CDs do Roberto Carlos.)

Hats off to Millôr

"(...) Neste albor (oba! oba!), nas primeiras luzes da gloriosa Era Lula, que muitos deturpam para Lula já era, temos a obrigação de repetir alto e bom som:

NADA DE PESSIMISMO, COMPATRIOTAS!

Agora são outros 500. E não adianta fazer balanço dos anteriores. Foram bons, foram ruins, foram péssimos, foram um fracasso. Mas já se foram. Agora temos que acreditar nos que vêm. Ora, pois.

Pois se, como todos sabem, a Geometria é resultado da curiosidade dos sábios gregos vagabundando na Ágora de Atenas; a Astronomia veio da superstição que criou antes a Astrologia; a Economia surgiu da avareza; a Eloqüência nasceu do ódio e do puxa-saquismo – por que a Grandeza do Brasil não pode começar com um Deficiente Digital?

OTIMISMO, GENTE! OTIMISMO!"

O velhinho continua matando a pau.

24.9.04

Strange things happening

Primeiro, a polícia encontrou, em diferentes regiões da cidade, pelo menos dez vendedores de pamonha com as mãos atadas às costas e gigantescos curaus servindo de mordaça. Pouco depois, surgiram relatos de gente acordada às seis da manhã por carros de pamonha que tocavam o prelúdio de "Tristão e Isolda" a todo o volume. No mesmo dia, shows de bandas cover de Raul Seixas foram interrompidos por pessoas que gritavam "toca Stravinsky!"; em um deles, o vocalista foi golpeado na cabeça com um grosso volume de "Guerra e Paz". Testemunhas asseguraram ter visto os sete volumes de "À la Recherche du Temps Perdu", em francês mesmo, no primeiro lugar da lista de livros mais vendidos da Veja, pau a pau com os sermões completos de Vieira. No domingo, assinantes da Folha receberam o Mais! com o nome mudado para Menas! e uma edição que consistia em fotos da Lídia Brondi pelada, daquela edição da Playboy circa 1986. E mais de um telespectador do Jornal da Globo confirma que a aparição de Arnaldo Jabor foi interrompida por trechos de Orson Welles em "F for Fake".

Os investigadores suspeitam que um mesmo grupo terrorista seja responsável por todas essas ações. Uma denúncia anônima corrobora essa hipótese e avisa que a próxima ação do grupo será uma performance na qual todo o prédio da Bienal é embrulhado num gigantesco saco de lixo preto e arrastado até a usina de compostagem mais próxima. Os cidadãos podem ficar tranqüilos: a polícia já recebeu ordens para não intervir se isso acontecer.

21.9.04

Pequena antologia goiabal

Gustavo Corção (1896-1978)

"Suponha (...) o leitor que um velho amigo entra em sua casa, esfregando as mãos, com a fisionomia banhada de gozo, e lhe confia o seu segredo depois de algumas hesitações: - Achei uma solução para o problema da minha barba! O leitor gostará de ouvir a notícia porque também tem barba e sobretudo porque também tem bons sentimentos. (...) Mas suponha o leitor, mais uma vez, que o amigo chegue ainda mais resplandecente, dizendo em meias palavras que achou a solução para a barba, para o café da manhã, para o lugar do pijama, para a tristeza de seu jantar e para a solidão insuportável de suas noites. Então deveremos pensar simplesmente que o amigo, no fim dessa fastidiosa enumeração, anunciará o seu noivado. É a idéia que logo ocorre a alguém que possua um certo senso de objetividade e uma noção de homogeneidade. Sabemos que não existe utensílio para tantas utilidades que tocam tão de perto os problemas de uma pessoa. Também não será um sistema, uma teoria, uma causa; essas coisas não fazem companhia a ninguém. Ninguém consegue jantar com um teorema ou passar uma noite de núpcias com uma idéia. (...)

Quando o amigo confessar que achou a noiva, dizendo seu nome, o jeito que ela tem, e encetar uma longa enumeração das prendas de sua eleita, ainda podemos achar sua exuberância um pouco ridícula, sentir alguma inquietação, porque conhecemos inúmeros casamentos maus que começaram em noivados fervorosos. A moça talvez seja uma tola qualquer que agradou pelo cabelo ou pelo talhe; como somos pessimistas nessa matéria, recearemos que nosso amigo se tenha enganado e que dentro de alguns anos nos venha visitar com meias palavras e reticências acabrunhadas. (...) Mas num ponto estamos tranqüilos: pelo menos, a equação que o amigo armou é homogênea, pôs pessoa de um lado e pessoa de outro, ou pretende somá-las por um sinal que é uma crucificação. A equação poderá estar errada, ou tornar-se errada em uma de suas transformações, errada na medida, na justa medida; mas está certa em relação ao senso comum. Alarmados ficaríamos, até o extremo limite, se o amigo nos viesse anunciar seu noivado com um teodolito ou com uma causa. Ora, outra coisa não se tem feito no mundo senão equações sem homogeneidade."

(Trecho editado de "A Descoberta do Outro", livro de estréia de Corção, escrito em 1944 e disponível em edição recente, de 2000, pela Agir. Ele narra sua conversão numa mistura particularíssima de crônica e ensaio. Leiam, leiam. Sim, até você, seu incréu.)

16.9.04

Esta peça tem o patrocínio de Cepacu

É curioso como certas expressões idiomáticas, dependendo do contexto, podem adquirir sentido literal. "Fila do gargarejo", por exemplo. Todo mundo sabe que esse é o nome para designar a primeira fila de poltronas num cinema, bem próxima da tela; as pessoas que se sentam nela são obrigadas a espichar o pescoço, como quem estivesse gargarejando, para conseguir assistir ao filme. Pensem, agora, no significado que a expressão adquire quando se trata de uma peça do dionysíaco Zé Celso Martinez Corrêa. Nem quero imaginar o que os incautos instalados ali são obrigados a gargarejar (e agora me ocorre um sinônimo para "fila do gargarejo", "cheira-saco". Deselegante, mas ainda mais literal).

14.9.04

A perfect gentleman

Não conheço modelo de cavalheirismo melhor que o ator George Sanders, intérprete do Addison DeWitt de "A Malvada" ("All About Eve", filme de 1950). Sanders matou-se em 1972, pouco antes de completar 66 anos, deixando o seguinte bilhete: "Dear world, I am leaving because I am bored. I feel I have lived long enough. I am leaving you with your worries in this sweet cesspool. Good luck".

Vejam que coisa: mesmo achando o mundo um lugar execrável, o suicida tem a preocupação de lhe escrever um bilhete de despedida e, como se não bastasse, de desejar a ele -o mundo, this sweet cesspool- boa sorte. Isso, senhores, é cavalheirismo. Melhor, só se o próprio morto pudesse cuidar de sua cremação sem aborrecer os outros com esse serviço assaz desagradável. Mas entendo que seria excesso de consideração com o mondo cane.

Vivemos num mundo cheio de suicidas provisórios, que ressuscitam alegres e lampeiros (ou nem tanto isso, nem tanto aquilo) algum tempo depois. Se é assim, não aceito deles deferência menor que a de Sanders pelo mundo-cloaca. Não custa nada pôr um post-it na porta da geladeira dizendo "fui morrer um pouquinho e já volto", como faria um gentleman digno do nome.

13.9.04

Manual Ruy Goiaba da piada pronta

A Martona liberou os buracos para ganhar a eleição. Passei por um deles ontem à tarde. Todo apertadinho, só o capô do meu carro entrou. Uma loucura. O Zé Careca diz que não gosta de liberar buracos -os negócios dele são aeroportos de mosquito e genéricos do Nosferatu. A Erunda, por sua vez, nunca liberou buraco nenhum, que isso não é coisa de mulher direitcha, e sim da direita. Já o Malufão liberou muitos buracos, promete liberar mais se eleito e ainda diz que a gente vai levar leite. Velho sem-vergonha.

(Técnica da piada pronta aplicada às eleições e distribuída entre os principais candidatos, conforme determinação do TSE.)

10.9.04

George Bernard Shaw no "Altas Horas"

Ninguém viu, a entrevista com o dramaturgo foi ao ar muito tarde. Mas posso jurar que Shaw estava lá, com sua barbona branca. Ao que parece, o tédio diante dos trejeitos de Serginho Gosma foi compensado pelas perguntas da molecada -que não fazia a menor idéia de quem era, mas se divertiu. Aqui vão algumas das respostas; os comentários entre colchetes são meus. Fala, garoto.

Pergunta - Você [o garoto não consegue chamar ninguém de "senhor"] parece uma pessoa do século 19. Por que se veste assim?

George Bernard Shaw - Ah, isso é apenas um truque para impressionar os mais novos. Sou velho e tenho uma barba branca, e as pessoas em geral associam essas coisas à sabedoria. É um erro. Se a pessoa nasce burra, a burrice só piora com a experiência.

Pergunta - Quais as vantagens de ser uma pessoa idosa [a garota evita cuidadosamente o termo "velha"]?

GBS - Não ter futuro. Não preciso me preocupar com o que digo nem com o que faço, diferentemente de vocês.

Pergunta - E o que é melhor em ser jovem?

GBS - O melhor é a possibilidade de aprender. Se você aprende qualquer coisa quando é novo, não esquece nunca mais. Agora que sou velho, esqueço das coisas em poucos segundos e das pessoas cinco minutos depois que me são apresentadas. Isso é uma grande felicidade: não quero mais me incomodar com coisas e pessoas novas. Mas não esqueço o que a governanta me ensinou. Portanto, botem para dentro tudo o que puderem enquanto são jovens.

Pergunta - Algum outro conselho aos adolescentes?

GBS - Se vocês fizerem como todo mundo faz e pensarem como todo mundo pensa, vão ter uma ótima relação com os vizinhos, mas sofrerão das mesmas enfermidades e estupidezes. Se pensarem e agirem diferentemente, sofrerão sua reprovação e perseguição. Não percam tempo refletindo sobre se devem amar todos os próximos -vocês não conseguiriam, nem eles. Afastem-se o mais possível de quem vocês não gostam, mas, quando não puderem, tratem-nos de modo tão honesto e cortês como se fossem seus melhores amigos. Pensem em como seria o mundo se todos os que não gostam de vocês lhes dessem um soco na cara.

Serginho Gosma, pulando sem parar de um lado para outro - Seu tem-po a-ca-bou.

GBS - Espero que vocês lamentem.

9.9.04

Literatura, pé na porta e soco na cara

Não sei o que seria de mim sem meus amigos letrados. Não fosse por eles, jamais saberia dizer o que é literatura, assim como ninguém pode saber como foi um jogo de futebol até ouvir o que Casagrande, Chico Lang ou o eclético Orlando Duarte têm a dizer. Mas confiança em argumentos de autoridade às vezes produz confusões. Outro dia, alguém me assegurou que literatura era coisa de "anglo-saxão", maneira polida de se referir a gente que dá o bozó. Nada contra quem fornece o que é seu etc., não se trata disso. A ficha caiu, simplesmente: é por isso que sempre me irritei com aqueles "old boy" e "by Jove" incessantemente repetidos ao longo da "Ilíada" e nunca pude tolerar o sotaque cockney de Arquíloco -aquele sujeito que, escrevendo, soava como o Michael Caine falando. Logo concluí, tristemente, que literatura não era para o meu bico e voltei a estudar latim vendo aqueles velhos comerciais de chester ("coxobus suculentus, pectus fartus").

Outra pessoa que admiro, porém, me advertiu de que vivemos uma ditadura das coisas desinteressantes ditas interessantemente. Eis como o esquema funciona: você apenas ameaça escrever alguma coisa interessante -às cinco da manhã, quando ninguém está vendo- e a puliça enfia o pé na sua porta, põe um capuz na sua cabeça, leva-o para lugar incerto e não sabido e o submete a sessões de afogamento, choque no saco e audição ininterrupta da opera omnia do Dire Straits. É exatamente o que a ditadura da estética faz com as mulheres que não malham nem põem silicone nos seios (e isso inclui os choques no saco. Não sabiam? Terrível). Ora, assim, literatura volta a ser bom negócio -se sobrevivermos, vamos pedir altas indenizações, escrever livros sobre a bravura da nossa geração, ganhar colunas em jornais da Botocúndia etc. Sounds good to me. Anglofilia-aaa, eu quero uma pra viver.

7.9.04

E o quinto nasceu sem pinto

Qualquer um que comece a letra de um hino com "já podeis da pátria filhos" está pedindo que tanto o hino como o país sejam sacaneados per omnia saecula saeculorum. Enquanto isso, gente verde de fome e amarela de malária samba nas ruas como a cadela pelada do poema da Isabel Bispo, sob as bênçãos de Ziriguidum, Telecoteco e Forrobodó. "Negão é o teu passadis", diz a frase positivista da bandeira. Temos curau e, sobretudo, pamonha.

6.9.04

Cuzzolino Júnior, o político ciborgue

O primeiro político desenvolvido em laboratório, com tecnologia 100% brasileira, será lançado experimentalmente nestas eleições, com vistas ao pleito de 2008. Ele foi concebido para agradar ao eleitor nos mínimos detalhes, a começar pelo nome: Ernesto Cuzollino Júnior (embora os cientistas tenham considerado a alternativa Zebuceto Neto). Cuzollino Júnior é vulgar, gordo, suarento e tem cara de esfíncter anal. É a combinação ideal de cheiro de povo com bens de milionário, todos obviamente em nome de laranjas. Seu aperto de mão é viscoso, grudento, pegajoso. Seus discursos são perfeitamente balanceados para conter o mínimo de idéias e o máximo de perdigotos. Seus braços foram projetados para carregar o maior número possível de crianças no colo, e seu estômago revestido de platina permite digerir uma média diária de dez empadas-que-mataram-o-guarda.

Os idealizadores do candidato biônico ainda não sabem se ele começará sua carreira política como radialista ou sindicalista -no segundo caso, é bem possível que seu sobrenome passe a ser Cuzolatto. A cidade-teste será, provavelmente, Osasco. Tudo está meticulosamente planejado: as fotos publicitárias do candidato ao lado de sua mãe, dona Cuzollina (velhinha levemente senil contratada para esse fim), a campanha na TV, com populares odontologicamente prejudicados dizendo "finalmente um candidato com a cara da gente! Eu voto Cuzollino de cabo a rabo!", e o jingle ("Cu-Cu-Cu-Cu-Cuzollino", adaptação do "lá-lá-lá-lá-lá-Brizola"). Ora, direis, e as propostas? A principal é a inclusão do ônibus espacial no bilhete único, pelo qual o cidadão poderá ir de Presidente Altino à Lua pagando apenas uma passagem. Além de principal, essa proposta é a única -mas, bem, para que outras?

Cuzollino, enfim, é o perfeito candidato-ciborgue, um homem de seis milhões de dólares; pode ser muito mais, dependendo das comissões que ele conseguir negociar com as empreiteiras. O Planalto não perde por esperar: Cuzollino Júnior é a cara do Brasil.

5.9.04

Bicombustível é tudo, tá?

Vejam vocês como a modernidade dos costumes não poupa nem os veículos automotores: a onda agora é ser bicombustível, bi. Não tem mais essa coisa careta, reacionária, de funcionar só com gasolina ou só com álcool: o bicombustível transa qualquer bomba numa boa, sem preconceitos, totalmente aberto (opa, epa) a novas experiências. Já existem até carros tricombustíveis, sim, senhor.

Em breve, veremos paradas do orgulho bicombustível e carros transgêneros (carros-moto, carros-hovercraft, carros-mobilete, carros-pogobol) circulando felizes, sem sofrer discriminação, pelas ruas da cidade. E um dia a poderosa indústria petrolífera, dominada pelos white heterosexual males, será derrotada: chegaremos aos pancombustíveis, que funcionarão com qualquer coisa que você puser no tanque -milho para pipoca, suco de laranja, Diabo Verde, Amendocrem e, como brilhantemente previsto por Itamar Assumpção, bosta de gente. Ai, que loucura.

4.9.04

Orson Welles falou, Orson Welles avisou

"Não existe uma 'cultura cinematográfica' (...), só um monte danado de filmes. Temos que 'ficar a par das coisas', claro, mas nisso entra o mundo inteiro -não apenas os filmes. Temos que descobrir o que for possível sobre este lugar em que vivemos -este lugar no tempo-, mas temos que tomar um cuidado doido para não nos tornarmos nunca parte totalmente integrante dele. O modismo é o sinal perfeito daquilo que é de segunda. Ao fim e ao cabo, seremos julgados não pelo grau de envolvimento que tivemos com a corrente dominante, e sim por nossas reações individuais a ela."

(Eis um dos inúmeros trechos citáveis de "Este É Orson Welles", livro de entrevistas concedidas pelo Fat Man ao também cineasta Peter Bogdanovich, lançado no Brasil pela editora Globo em 1992. Não façam como eu, que demorei anos para lê-lo. Leiam djá.)

3.9.04

A palavra é a coisa

Quando os arqueólogos dos séculos vindouros estiverem lendo as pedras de Roseta do século 21, talvez tenham alguma dificuldade para entender aqueles desenhinhos que significam "politicamente correto". Na esperança altamente improvável de que um deles encontre este blogue vagando abandonado pelo ciberespaço, explico: é o que a má consciência dos paulistanos está fazendo com os mendigos mortos a pauladas no centro. Dar segurança ou abrigo a esse pessoal é uma preocupação secundária: importante mesmo é não chamá-los de "mendigos", porque eles podem se melindrar se acaso resolverem ler os jornais com que se cobrem à noite.

Daí surgem os "moradores de rua", bonita contradição-em-termos superada apenas pelo Partido Revolucionário Institucional do México. Há também as "pessoas em abandono" e as "pessoas em situação de rua". E, assim, o paulistano pensa: "Puxa, como é reconfortante saber que aquele cara esparramado no chão sujo perto do meu trabalho está só em 'situação de rua'. Posso passar por cima dele sem dramas de consciência". Politicamente correto é, em essência, isso: achar que palavras ferem mais que pauladas.