30.11.02

ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO, INCULTA E FEIA

O título deve ser tomado com alguns grãos de sal. Claro que a língua portuguesa é fantástica, cheia de charme, suíngue, veneno e saüdade (com trema, como o Camões preferia). Fora todo o seu ziriguidum, telecoteco e forrobodó. Mas vocês hão de convir que algumas palavrinhas são de lascar. Resolvi fazer uma lista daquelas que, na minha opinião, são as cinco palavras mais feias do idioma e deveriam ser suprimidas de qualquer conversa entre pessoas civilizadas. Se você discordar ou tiver outras sugestões, recorra ao goiabamail, no canto direito da página.

* Celeuma. Eu fujo de celeumas -não só porque não gosto de tumultos. A palavra me lembra uma ameba geneticamente modificada ou uma água-viva gigante de seriado japonês trash.
* Mutuário. Toda vez que um jornal menciona os "mutuários da Caixa Econômica Federal", eu penso num ajuntamento de moscas-varejeiras. Talvez isso faça algum sentido.
* Piorréia. Horrenda, não? Isso vale, aliás, para todas as palavras terminadas por "-réia", elemento de composição que vem do grego e significa "corrimento" (argh!). Pense em "diarréia", "seborréia", "gonorréia" e outras belezas gorjeantes.
* Ranho. Palavra adequadíssima ao significado. "Catota de nariz" é mais divertido, mas "ranho" é mais eloqüente.
* Ungüento. Os dicionários dizem que é "um medicamento de escassa consistência, para uso externo". Não acredite neles. Trata-se, na verdade, do filho da celeuma com o ranho: um ser amebóide, mole e viscoso que entra pelas narinas dos incautos e se alimenta dos seus cérebros. Cuidado com os ungüentos.
PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL 35

Herberto Helder (1930 - )

Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus
vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,
amanhã morrerei.
Talvez eu comece a morrer na tua mão direita,
alterosa e quente na minha mão
sufocada. Agora mesmo na europa
começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida
percorrida por um álcool penetrante, é a imediata
atenção ao misterioso trabalho da idade.

Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais
sombrios da carne, sobre um vasto segredo.
Será apenas isto, um ponto móvel
da eternidade, isto -a sufocação veloz e profunda
da vida inteira na minha garganta? E depois
o acender das luzes, bruxelas como uma câmara
de archotes e ao alto as ameias
enevoadas dos astros? Devo olhar com uma grande
memória aquilo que acaba na violência triste
do poema.

Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilónia
partem rios. Por detrás das cortinas,
despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho
vinte e nove bocas urdindo
a falsa doçura da confusão. Os países constroem
a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão
pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante
a loucura masculina
da minha vida. Pensa um pouco na beleza
ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível
das pessoas ou o seu respirar
que arde e brilha e se apaga à superfície
das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso
rapidíssimo
que jamais desaparece do silêncio, na candeia
que cobre com agulhas de ouro os escombros
dos lírios. E por cima de tudo estende
a tua pequena mão eterna. Cai
tu própria na treva quente da minha
cega mão masculina de vinte
e nove
anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda
inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta
cheia de sangue actual -amanhã morrerei.

Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas
velozes, pedras que pareciam
imortais. Eram casas que se levantavam
sobre o meu coração. Vi que tomavam
animais feridos, flores imaturas, objectos
breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam
alguma coisa eterna. Era gente
de vinte e nove anos que se despedia dolorosa
pormenorizada
violentamente de uma parte da sua carne, a parte
mais iluminada da sua
carne de vinte e nove anos. Amanhã
morrerei.


("Elegia Múltipla VII", 1960. Se você nunca ouviu falar do barbudo e recluso Herberto Helder, saiba que ele é talvez o maior poeta português vivo. A Iluminuras lançou há pouco uma coletânea de seus poemas chamada "O Corpo o Luxo a Obra". Não se assuste com o título, que poderia servir de nome a uma instalação do Joãozinho Trinta: pode comprar sem medo.)

29.11.02

MONSTROS JAPONESES

Eu sabia que ia dar nisso. Todos os roteiros escritos pelos japoneses para seriados como Spectreman, Ultra Seven e similares eram, no fundo, premonitórios: hoje, o país precisa enfrentar o ataque das águas-vivas gigantes. Bem, como sempre fui um entusiástico espectador desse tipo de série, também vou exercer meus dons proféticos e prever os desdobramentos: devido à poluição que assola o planeta, todas as águas-vivas se juntarão para formar uma gigantesca água-vivona monstruosa, que ameaçará destruir as cidades costeiras do Japão e se esgueirar até Tóquio. O Exército, a polícia e todos os super-heróis serão convocados, mas nada surtirá efeito -até que, durante o ataque ao monstro, surgirá no meio da multidão uma pequena criança de coração puro. A pequena criança, com lágrimas nos olhos, gritará: "Parem! Ele é bom!", referindo-se ao monstro. Ato contínuo, começará a tocar sua flautinha doce -e a gigantesca água-vivona monstruosa dançará alegremente, sob os aplausos do populacho.

28.11.02

O PRÍNCIPE DOS POETAS EM BEREGÜÊ

Como se dizia no tempo de Gutenberg, parem as máquinas. Descobri quem é o maior especialista brasileiro em beregüê, com mestrado, doutorado e livre-docência no assunto -um verdadeiro poeta laureado desse novo esperanto. Não, não se trata de Carlito Marrom, como eu cheguei a pensar, mas do genial DJ Avan. A prova está na letra de "Obi", transcrita abaixo. Essa música é de 1984, mas só tomei conhecimento dela neste ano (vocês imaginem -18 anos perdidos!). Leiam-na, meus caros, e abram seus corações e suas mentes para este momento de epifania.

Obi, obi, obá
Que nem zen, czar
Shalom Jerusalém, z’oiseau
Na relva rala
Meu arerê tombara
Ali, Alá, logo além
Nem lá, Logum
Pra cá ninguém faraó
No ver da gente
O samba é pedra mor
África, Benfica
E fica melhor
Amanheceu de um sorriso
Vida como é preciso
Sonhando, sentindo
Cantando, infindo
Ouvindo, falando
Falo de mim
Pra você
Alô, olá
Se não for pra já, so long
Ouricuri madurou

ÓTIMA PROFISSÃO PARA A BARBIE

O divertido blog Uma Dama Não Comenta mencionou, há pouco tempo, uma pesquisa que está sendo feita no site da Barbie. Há ali uma linha de bonecas com profissões. Até agora, foram lançados dois modelos dessa série: a Barbie médica e a Barbie professora de artes. A enquete procura saber que outras profissões a boneca poderia ter: bibliotecária, policial ou arquiteta.

Pena que o site não ofereça outras opções, porque eu tive uma excelente idéia: a Barbie-professora-de-filosofia. Ela deve ser bem mais gordinha que as outras, usar óculos e ter os cabelos pretos completamente desgrenhados. Também vestirá só roupas largas, adornadas por uma estrelinha vermelha, e terá sempre embaixo do braço seus livrinhos de filosofia e de receitas, totalmente indistintos uns dos outros. Acho que vai fazer o maior sucesso entre meninos e meninas da USP e da PUC. Vocês não?
IDENTIDADES SECRETÍSSIMAS 2

Dando prosseguimento à nova série do puragoiaba, vamos à sensacional revelação da identidade de mais um vilão ficcional.

Senhor Burns = Rubens Ricupero




Bom, parafraseando o Conselheiro Acácio, ça va sans dire: a semelhança física é evidente. Apesar disso, o disfarce é dos mais engenhosos. Quem desconfiaria que um diplomata com essa cara de ex-seminarista bonzinho é o cruel patrão de Homer Simpson? Fiel a si mesmo, Ricupero continua escondendo o que é ruim.
O LOCUTOR DA RÁDIO GOIABA

Devo ao Inagaki a ressurreição de um fantasma do meu passado recente (que, como dizia o Nelson Rodrigues, é antiqüíssimo): Paulinho Boca, o locutor mais goiaba da história das rádios FM no Brasil. Boca apresentava um programa cujo título, de que não me lembro, devia ser "love songs", "flashback" ou algo do gênero. Entre as músicas do seu seleto repertório -Billy Joel, KC and the Sunshine Band, Bonnie Tyler, Morris Albert ("ou, ou, ou, feelings"), Nazareth ("uuu-uuu-uuu-uuu, love hurts") e outros de igual calibre-, o locutor fazia comentários de altíssimo conteúdo filosófico ou erótico. Coisas como "sou um satélite circulando em torno do planeta Amor" ou, quando a meia-noite se aproximava, "os dois ponteiros do relógio estão juntinhos, um em cima do outro". No segundo caso, acho que nem o Wando faria melhor. Se eu tivesse uma rádio, o Boca seria meu diretor de programação.

Adendo: acho que esse texto desencadeou em mim uma crise de abstinência. Preciso parar de ouvir as "Suítes Francesas" do Bach e trocá-las por um Billy Joel na veia, de preferência "Uptown Girl" ("and when she's walking, she's looking so fi-i-ine"...).

26.11.02

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL 34

Bruno Tolentino (1940 - )

Tomo o café amargo
que me trouxeram; tomo-o
como se toma um símbolo
incompreensível, como

a vida de um só trago.
E acendo-me um cigarro
por não ter um cachimbo
como não tenho um carro

e não tenho um cachorro.
Foi atrás de um feitiço
ou por causa de um porre

que eu vim parar no Morro
do Encanto? Enquanto isso,
coração enfermiço,

nem te curas nem morres.


("O Estrambote do Morro do Encanto", em "Anulação e Outros Reparos", 1963/1998.)
JORGE AMADO'S FICTION GENERATOR

A tequinologia (na peculiar pronúncia de Joana Prado) é mesmo uma coisa fantástica: ela torna a existência de certos escritores e/ou compositores perfeitamente desnecessária. A Goiaba's Enterprises já está trabalhando num sensacional programa, o "Jorge Amado's Fiction Generator", que permitirá a você, caro internauta, escrever seu próprio romance de Jorge Amado.

É simples. O usuário pode combinar aleatoriamente alguns personagens -o turco, o coronel corrupto, a puta dadivosa, as velhas beatas, os boêmios e um jovem (ou, melhor, uma jovem) idealista. Depois, deve adicionar generosas doses de séquiço e algumas pitadas de candomblé. Pronto! Eis aí o seu legítimo romance de Jorge Amado -e, se você quiser, ainda pode aproveitá-lo para fazer sua própria novela do Aguinaldo Silva.
IDENTIDADES SECRETÍSSIMAS 1

Como vocês sabem, eu gosto de começar séries de posts, mas jamais consigo terminá-las -por esquecimento ou pura e simples falta de idéias. Mas esta pode ser interessante: este blog se propõe a revelar as identidades secretíssimas de alguns dos grandes vilões da ficção. E já começo com uma revelação bombástica:

Doutor Gori = Roberto Mangabeira Unger



Sim! Que melhor disfarce poderia haver para um macaco loiro, artista conceitual e performático, obcecado por derrotar Spectreman e destruir Tóquio, do que o de um pacato professor titular de direito em Harvard, cientista político e eventual guru de candidatos? Para dirimir todas as dúvidas a esse respeito, basta ouvir Mangabeira falando. É facílimo imaginá-lo, com seu fortíssimo sotaque americano, dizendo coisas como "temos que construir no Brasil um mercado de consumo em massa e estimular os empreendedores emergentes. Mas, sobretudo, temos que destruir Spectreman!". (Ainda falta averiguar se Ciro Gomes é mesmo o disfarce civil do seu fiel assistente Karas e descobrir onde diabos eles escondem a baleia voadora.)
BEIJO PRO PAPAI, PRA MAMÃE E PRA VOCÊ, XUXA

Agradeço às pessoas que me mandaram mensagens (às quais, aliás, ainda preciso responder) ou mencionaram, em seus blogs, o aniversário do puragoiaba -ou seria "desaniversário", Lewis Carroll? Especialmente o Félix, do Lucubrando, e a Carol, que fez um fantástico "banner-fanzine" para esta minha adorável pocilga. E, é claro, não posso me esquecer de agradecer aos meus supremos mestres: Apollo, o Doutrinador, e o coronel Trautman. Qualquer um que me leia sabe que, intelectualmente, eu sou uma mistura de Rocky Balboa com John Rambo. Fisicamente, aliás, também -só que com a barriga do Genival Lacerda.

23.11.02

O CUMPLEAÑOS DO PURAGOIABA

Pois é, meu blog fez um ano em 4 de novembro. Na época, ou eu estava muito ocupado ou meu subconsciente, que registrou a efeméride, emitiu sinais que podem ser traduzidos como "grande bosta". Mas, depois, pensei que eu não teria melhor oportunidade para escrever uma palavra horrorosa como "efeméride" nem para usar slogans do tipo "o puragoiaba faz aniversário, mas quem ganha o presente é você". Além disso, comemorar um ano e 19 dias de blog é muito mais goiabal, n'est-ce pas? Só que eu ainda não pensei numa boa promoção de aniversário para meus três ou quatro abnegados leitores. Quem sabe um tour pelas lojas Marabraz ou uma sessão de "degustação auditiva" com CDs de Cauby, Angela Maria e Agnaldos (Timóteo e Rayol). Sei lá.
MINERAÇÃO DO OU(T)RO

Estou lendo "Coração Partido" (Cosac & Naify), livro em que o professor e crítico literário Davi Arrigucci Jr. analisa quatro poemas de Drummond ("Poema de Sete Faces", "No Meio do Caminho", "Áporo" e "Mineração do Outro"). Hoje, Arrigucci é talvez o melhor leitor e "explicador" de poesia no país, capaz até de lançar novas luzes sobre peças conhecidíssimas como os dois primeiros poemas (eu mesmo comecei a me interessar por poesia depois de ler sua análise de "Maçã", do Manuel Bandeira. My God, lá se vão mais de quinze anos). Você pode ler aqui "Mineração do Outro" e, na seqüência, os comentários de Arrigucci.

Gosto muito desse poema, que começa tentando escavar/decifrar o sentimento amoroso e termina sem decifração nenhuma, com um decassílabo lindamente barroco ("arder a salamandra em chama fria"). Mas só há pouquíssimo tempo percebi o trocadilho, óbvio desde o título, com a expressão "mineração do ouro". Pensei comigo: bem, essa é toda a diferença entre o Drummond e os concretinos. Para um integrante desse segundo grupo, só o título seria mais que suficiente como poema -talvez com parênteses, para dar um ar mais vanguardista: mineração do ou(t)ro.

22.11.02

MAIS CONCRETINICES

Minha querida amiga Baronesa citou, há pouco tempo, um cartaz de açougue ("coxa/sobrecoxa") genialmente concretista. Como a inspiração está em toda parte e o espírito sopra onde quer, esse cartaz serviu de ponto de partida para a minha segunda obra-prima concreto-erótica (a primeira, vocês devem se lembrar, foi o internacionalmente famoso ). Sem falsa modéstia: digam se é para matar o Haroldão de inveja ou não.

coxa
sobre
coxa

coxa
sob
coxa

sobresob
sobsobre

coxa
xaco

xacaxacanabutxaca
A IMPLACÁVEL DONA GOIABONA

Putz, bateu uma depressão agora. Constatei que não posso concorrer nem ao prêmio para blogs concebido pela Daniela, do Mundo Perfeito ("Prêmio Blog Award Mamãe Achou o Máximo"). Dona Genibalda Goiaba, minha distintíssima genitora, esteve por aqui agora há pouco, leu as mal traçadas que eu batucava e fez a seguinte crítica: "Que merda isso que você escreve, meu filho! Foi pra isso que eu te criei com tanto amor, carinho e Cremogema? Não chega a vergonha que você me fez passar quando entrou praquele grupo de viadinhos [claro, ela tem que se lembrar da minha passagem pelo Menudo]?". Não vejo a hora de ser eleito para a ABL: quem sabe se eu aparecer em casa de fardão a velha pare de me importunar. (Também não vai dar certo. Ela vai dizer que meus chinelos não combinam ou que o fardão deixa minha barriga ainda mais proeminente.)
PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL 33

G.K. Chesterton (1874-1936)

"This tale was told by Father Brown to Professor Crake, the celebrated criminologist, after dinner at a club, where the two were introduced to each other as sharing a harmless hobby of murder and robbery. But, as Father Brown's version rather minimized his own part in the matter, it is here re-told in a more impartial style. It arose out of a playful passage of arms, in which the professor was very scientific and the priest rather skeptical. 'My good sir', said the professor in remonstrance, 'don't you believe that criminology is a science?' 'I'm not sure', replied Father Brown. 'Do you believe that hagiology is a science?' 'What's that?' asked the specialist sharply. 'No; it's not the study of hags, and has nothing to do with burning witches', said the priest, smiling. 'It's the study of holy things, saints and so on. You see, the Dark Ages tried to make a science about good people. But our own humane and enlightened age is only interested in a science about bad ones. Yet I think our general experience is that every conceivable sort of man has been a saint. And I suspect you will find, too, that every conceivable sort of man has been a murderer'."

(Esse é o começo de "The Man with Two Beards", conto incluído em "The Secret of Father Brown", 1927.)
LEMBRETES PARA MIM MESMO

1) Desenvolver o conceito pós-mcluhaniano de "aldeia blogal", já referido aqui. Por enquanto, posso adiantar que é uma espécie de aldeia do Asterix composta, basicamente, por clones do Chatotorix (claro, há exceções, e -por Tutatis!- ainda bem que elas existem). 2) Todo mundo já ouviu falar do grande filósofo Erasmo de Rotterdam, autor do "Elogio da Loucura" -que, aliás, preciso incluir na antologia goiabal. Mas pouquíssima gente sabe da existência de Roberto de Rotterdam, seu inseparável parceiro de tertúlias filosóficas. Roberto foi um dos primeiros a contestar as noções de astronomia herdadas dos gregos, com a brilhante formulação "estrelas mudam de lugar, chegam mais perto só pra ver". Quem sabe eu me anime a contar sua história.

21.11.02

A ANTE-SALA DO INFERNO

Eu já disse a vocês que minha concepção do inferno não tem nada a ver com a do Bernard Shaw em "Man and Superman", não? (Infelizmente, porque, se há um inferno bom, é aquele lá.) Mas, por outro lado, ela também é muito diferente -para pior- do descrito pelo Joyce no "Retrato do Artista Quando Jovem". O inferno, senhores, é um eterno sofá da Hebe Camargo, em que nos sentaremos pelos séculos dos séculos e teremos de aturar o mau hálito do sertanejo de cueca. Fora o horror de sermos recebidos, na ante-sala, por Amaury Júnior de smoking e segurando uma flûte de champanhe. Eu juro que preferia o Cérbero, com suas três cabeças ladrando à minha passagem.
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE RUY GOIABA

Sumi nos últimos dias porque, entediado com os événements, fiquei batendo um longo papo com Brás Cubas. Ele, por sua vez, estava cansado de estudar a geologia dos campos-santos -para usar a expressão do Bentinho- e me recebeu cordialmente. Aproveitando que estávamos à vontade, como dois velhos amigos, perguntei-lhe se poderia tomar emprestada uma ou outra linha do romance para meu diário (achei que seria assaz cacete explicar ao Brás o que eram weblogs). Algo assim: "A gente grave achará neste blog umas aparências de pura tolice, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu blog usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião". O Brás deu de ombros e, como eu já esperava, respondeu: "Meu caro Goiaba, não há nada tão incomensurável como o desdém dos mortos. Paulo Francis que o diga". De repente, notei que o próprio Francis estava ali por perto, mas tão embevecido ouvindo Georg Solti reger Wagner que não tive coragem de interromper. Compreendi plenamente o desdém e voltei pra esta chatíssima vidinha do inframundo.

18.11.02

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL 32

Cioran (1911-1995)

"Após a publicação do 'Breviário' em espanhol, dois estudantes andaluzes me perguntaram se era possível viver sem fundamentación. Respondi-lhes que era verdade não ter encontrado nunca uma base sólida em lugar nenhum e, no entanto, ter conseguido subsistir porque, com os anos, a gente se habitua a tudo, até à vertigem. E depois não estamos despertos e não nos interrogamos o tempo todo, sendo a lucidez absoluta incompatível com a respiração. Se estivéssemos, a cada momento, conscientes do que sabemos, se, por exemplo, a sensação da falta de fundamento fosse ao mesmo tempo contínua e intensa, cometeríamos suicídio ou cairíamos na idiotia. Só existimos graças aos momentos em que esquecemos certas verdades, e isso porque durante esses intervalos acumulamos a energia que nos permite enfrentar as ditas verdades."

(Continuo sem tempo para escrever, mas acho chato que meus três ou quatro leitores passem por aqui e não vejam nada de novo. Então, dá-lhe "antologia". Esse é um trecho de "Relendo...", texto em que Cioran -filósofo romeno que viveu na França- comenta a reedição, 30 anos depois, de seu primeiro livro escrito em francês, "Breviário de Decomposição", de 1949. O trecho está em "Exercícios de Admiração", de 1986, lançado no Brasil em 2000 pela Rocco. Dica do tio Ruy: se você não conhece, vá atrás.)
TO WHOM IT MAY CONCERN

A foto dos "jumentos zen" que usei neste blog faz pouco é de um fotógrafo chamado Canindé Soares. É claro, eu não o conhecia; mas, fazendo uma daquelas buscas no Google, achei os bichos por ele fotografados tão plácidos, contemplativos e nirvânicos que justificavam plenamente as sábias palavras do vocalista da Narguilé Hidromecânico ("o jumento é bom! O homem é ruim!"). Também pensei em pôr uma foto do John C. Holmes ("um homem chamado jumento"), mas desisti porque eu não conseguiria enquadrá-la sem alguns cortes (ooops).

16.11.02

TELECOMUNICAÇÕES TRIBALISTAS

Se você acha péssimos os serviços da Telefônica ou da Telemar, está reclamando de barriga cheia. Pense só no que aconteceria se o "auxílio às listas" fosse como o Kibe Loco descreve. Hilariante.

15.11.02

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL 31

Stendhal (1783-1842)

"Sentimos prazer em ornar de mil perfeições uma mulher de cujo amor temos certeza; passamos em revista toda a nossa felicidade com uma complacência infinita. Isso se resume em exagerar uma propriedade soberba, que acaba de nos cair do céu, que não conhecemos e cuja posse nos é assegurada. Deixem a cabeça de um amante funcionar durante 24 horas e eis o que encontrarão. Nas minas de sal de Salzburgo, joga-se nas profundezas abandonadas da mina um ramo de árvore desfolhado pelo inverno; dois ou três meses depois, ele é retirado coberto de cristalizações brilhantes: os menores raminhos, aqueles que não são maiores do que a pata de um chapim, são guarnecidos de uma infinidade de diamantes móveis e cintilantes; já não podemos reconhecer o ramo primitivo. Chamo de cristalização a operação do espírito que extrai de tudo o que se apresenta a descoberta de que o objeto amado tem novas perfeições. (...) Um homem apaixonado vê todas as perfeições naquilo que ama; no entanto, a atenção ainda pode ser distraída, pois a alma se sacia de tudo o que é uniforme, até mesmo da felicidade perfeita."

("Do Amor", 1822. Tradução de Roberto Leal Ferreira.)

14.11.02

NOVOS TESTES GOIABAIS

Volto aos sensacionais testes do puragoiaba. Advirto que o teste abaixo, com seu longo preâmbulo, é fictício e se refere a uma situação totalmente hipotética. Imagine que você vive num país cujo presidente recém-eleito ama de paixão um ditador barbudo, tanto que se dispõe a adiar sua posse para recebê-lo. Imagine, ainda, que esse presidente decida não só adotar certas idéias do barbudão sexy como aperfeiçoá-las -por exemplo, limitando o consumo de papel higiênico a meio metro por pessoa, a cada seis meses. Só que você é um cagão contra-revolucionário e não consegue disciplinar seus intestinos para que se mantenham dentro desses generosos limites. Pergunto: o que você faz?

a) Limpa a bunda com o pasquim mais à mão (Folha, Estado, Globo, Granma, O Pasquim etc.), sem se importar com o fato de que o jornal solta tinta e vai deixar seu derrière ainda mais sujo.
b) Limpa a bunda com pedra, porque você é macho pra caramba -e as pedras são duras, mas no fundo nunca perdem a ternura.
c) Deixa tudo como está, porque bunda limpinha é frescura, convenção burguesa e/ou odiosa imposição imperialista.
LUSOTRASH

Já falei aqui, creio, da minha ascendência portuguesa -coisa facilmente perceptível por quem repare na caneta Bic que está sempre atrás da minha orelha (às vezes, acho que ela nasceu ali). Mas eu tenho um amigo, o Joaquim*, que é o português da caricatura: baixinho, meio careca e bigodudo, ele consegue dizer em média onze palavrões por frase. É a figura ideal para mais um projeto da Goiaba's Enterprises: um misto de programa do Ratinho com Hermes & Renato, dirigido à colônia lusitana. Vai ser divertido ver o Joaquim bater com o salpicão na mesa, à guisa de cassetete, e pontuar suas frases com um "putaq'p'riu, c'ralho, vá t'mar n' cu" (não necessariamente nessa ordem).

* Como vocês sabem, todos os portugueses se chamam Joaquim, exceto aqueles cujo nome é Manuel. Um dia hão de descobrir que F'rnando-P'ssoa-ele-mesmo nunca existiu. Devia ser o heterônimo dalgum Manuel Joaquim ou Joaquim Manuel.
SARNEYZÃO REVISITED

Esse negócio de páquito social provocou em mim uma espécie de bad trip oitentista. Por mais que a moda agora seja barba, terno Armani e língua presa, tremo só de relembrar coisas como bigode, jaquetão e "Maribondos de Fogo" (o que não custa muito; sabe-se que esses trios têm andado juntos ultimamente). Bom, deixa ver se entendi o tal do páquito: o governo, atual ou futuro, sorri e afirma que não tem dinheiro, precisa arrecadar mais. O empresariado retribui o sorriso e diz que a carga tributária é pesada demais: pede redução de impostos. E os espectadores do teatrinho também sorriem, pelo menos até descobrir que "páquito social" rima com "prepare o cu que lá vai pau".

13.11.02

MAIS NOTAS ALEATÓRIAS & DESINTERESSANTES

1) Está equivocado quem diz que o concretismo é elitista. Ao contrário, é uma poesia intrinsecamente popular. Por exemplo, já vi aqui em São Paulo uma loja de aparelhos de som para carros chamada Adil-Som. Só não faço um estudo desse nome citando as palavras-valise nas obras de Lewis Carroll e Joyce porque estou com preguiça. Mas é genial, vocês hão de convir.

2) Axioma de Ruy Goiaba: a potência do equipamento de som de um carro é sempre inversamente proporcional ao bom gosto musical de seu proprietário. Empiricamente, não há o que me desminta. Nunca ouvi nenhuma picape tocando os quartetos de cordas do Haydn ou o "Don Giovanni" no volume máximo.

3) Às vezes penso que Ruy Goiaba não é um nome condizente com um rapaz sério. Mas, logo depois, me lembro de que eu não sou sério e desencano. Pior seria se eu me chamasse Asdrúbal, como um ex-colega meu. Não pelo nome em si, mas porque o cara tinha de aturar, desde os tempos de colégio, pessoas espirituosas perguntando se ele tinha trazido o trombone, hahaha.

A propósito, um dos grandes mistérios da humanidade é esse: onde está o trombone do Asdrúbal? Há quem diga que Regina Casé o engoliu. Outros acreditam que Evandro Mesquita vendeu o trombone para pagar sua operação de lobotomia. Mas eu aposto: foi o Luiz Fernando Guimarães que escondeu o instrumento direitinho, num lugar fresquinho e onde o sol não bate.
COISAS DE MAGIA, SEI LÁ

Vida difícil no reino da bananada de goiaba; ando sem tempo nem idéias para escrever. Talvez eu faça uma seção "vale a pena ler de novo" e exume antigos posts -mais ou menos como o Cony faz com aquela história da Grande Mágica das Favas, que ele já citou em umas 500 crônicas. Quem sabe eu engorde a antologia goiabal, o que é mais provável. Precisa ser uma citação boa o suficiente para compensar os "pingüim covers" de hoje, os irmãos trifrutas Kleiton & Kledir. Ambos, diga-se, mestres consumados do beregüê sulista e autores de lindos versos como "alô, tchurma do Bonfim, as guria tão tri a fim" e "paralelo 30, quê-quê" (além do slogan gay friendly que encimou esta página hoje, "não quero nem saber se o pato é macho: eu quero é ovo". Afe!).

10.11.02

FILOSOFIA FRANCESA & PEANUTS

E o "slogan indelével" ataca novamente. A frase aí de cima deveria ser "que sais-je?" (que sei eu?), para combinar com o retrato do Montaigne que eu pus sobre os arquivos. Mas não consigo apagar o slogan que acompanhava o Benito di Paula ("puragoiaba, o blog do amigo do Charlie Brown"), o que torna a associação entre frase e figura uma coisa tão pós-moderna quanto incompreensível. Na verdade, penso que Montaigne e Charlie Brown jamais seriam bons amigos. O segundo, certamente, acharia o primeiro otimista demais. Oh, good grief!

8.11.02

RETRATO DO BRASIL

Hoje, no trânsito, meu carro ficou atrás de um Uno Mille, consideravelmente detonado, que ostentava o seguinte adesivo no seu vidro traseiro: "Direito - nós somos a elite pensante do Brasil" (a bem da verdade, era "elite ensante", porque o "p" do adesivo estava descolado). Bem, pensei comigo, isso explica tudo.

Não sou advogado, mas quero comprar um adesivo igualzinho. Combina com meu Dodge Dart verde-abacate e vai ficar ótimo ao lado de um outro que eu já tenho ("entre os amigos só encontrei cachorro, mas entre os cachorros encontrei-te, amigo!").
BREGA'S BANQUET

Reginaldo Rossi (1944- )

Eu conheci um cara
Numa festa da pesada lá no Canecão
Ele aprontava tanto rolo, tanta confusão
Dele me aproximei e ouvi este refrão
Ele dizia:
Tô doidão, tô doidão, bicho, eu tô doidão
Tô doidão, tô doidão, bicho, eu tô doidão
Bicho, eu tô doidão
Porque roubaram minha mina dentro do salão

E esse mesmo cara
Passou um ano na Bahia e quando voltou
Foi no programa do Chacrinha e lá ele aprontou
Disse "eu vou cantar uma linda canção"
E cantou
Tô doidão, tô doidão, bicho, eu tô doidão...


("Tô Doidão", versão de uma música do cantor francês Joe Dassin. Não sei o ano, mas presumo que seja da década de 70. Pena que eu não me lembre da letra de "O Gênio Cabeludo", em que Beethoven aparece ao Reginaldão e lhe diz que ele tem de fazer "música para a juventude". Coitado do Ludwig van.)
BENITO É FASHION

Desculpem: eu tinha de usar essa foto do Benito di Paula circa 1975, no programa do Chacrinha. A calça do cara é o que há; deve ter sido feita com forro de sofá de bordel dos anos 50 (talvez aquele do "abajur lilás" cantado pela Dalva de Oliveira). Com um amigo desses, entendo por que o Charlie Brown vivia deprimido.

6.11.02

O BEREGÜÊ NO FUTEBOL

Conforme o prometido, coloquei como "pingüim cover" Rivellino (na foto, com uma cacatua sobre o braço), o supremo mestre do beregüê futebolístico. O slogan do alto da página -"se dé, dé; se num dé, num dé"- eu ouvi, ninguém me contou. O jogo era Argentina x Camarões (abertura da Copa da Itália, em 1990), que o time africano terminaria vencendo por 1 a 0. Lá pelas tantas, com Camarões à frente e os argentinos sem conseguir marcar, Riva soltou essa maravilhosa pérola do beregüê. Presumo que ele tenha querido dizer algo como "se não der, não deu" -o que também seria uma frase de exemplar sagacidade, mas muito modesta para um gênio lingüístico-futebolístico.

5.11.02

NOTAS ALEATÓRIAS SOBRE ASSUNTOS DESINTERESSANTES

1) Vi um daqueles outdoors de ônibus (em português quinhentista, busdoor) anunciando uma determinada marca de lingüiça como a preferida de Raul Gil. Sejamos sinceros: vocês comprariam uma lingüiça com o "selo de qualidade" de um cara que usa aquela tintura de cabelo disgusting? Que se apresenta todo estufado dentro de seus ternos de cores inacreditáveis, como mostarda-com-ervas? E que, certamente, só se refere ao produto usando aquele duplo sentido inteligentíssimo ("quem provou a lingüiça do Raul gostou, hahaha..."). Raul Gil é o non plus ultra da escrotice televisiva. Por isso mesmo, é um herói deste blog.

2) Coisas como Jorge Mautner, performances com leitura de poesia e o uso da palavra "alterrrnatchivo", separadamente, já me dão engulhos. Juntas, como no "Musikaos", podem provocar efeito semelhante ao de uma crise convulsiva. Para o bem de minha saúde, portanto, evito passar por esse tipo de experiência. Mas eis que, numa noite, meu controle remoto se deteve no programa. Ele mostrava uma banda piauiense chamada Narguilé Hidromecânico, cujo vocalista -franzino e vestindo o colete laranja dos garis da Prefeitura Municipal de Teresina- se agitava no palco gritando coisas como "O jumento é bom! O homem é ruim!". Cara, isso é ou não muito melhor que os tais tribalistas? É a verdade mais profunda já enunciada pela música brasileira: o jumento é bom. O homem é ruim. Pense nisso.
BIGODES CONCEITUAIS

Vocês pensam que a escolha dos meus "pingüins cover" é aleatória? Nada disso, ela é totalmente conceitual. Ontem pus aí em cima dos arquivos uma foto do Nietzsche, o Belchior da filosofia alemã; hoje, num perfeito contraponto, a foto é do Belchior, o Nietzsche de Sobral. Falta só achar uma do Rivellino, que é a maior autoridade em beregüê entre os comentaristas de futebol (o que, convenhamos, não é pouco).

4.11.02

A ZECELSICE FINALMENTE EXPLICADA

Outro amigo me retransmitiu o convite para o debate de lançamento de um livro: "Folha Explica José Celso Martinez Corrêa". Confesso que fiquei atônito: como assim? Alguém crê que Zé Celso seja um ser explicável? Será que finalmente eu vou entender o que é o te-ato electrocandomblaiko? Ou o livro traz, passo a passo, as instruções para fazer uma orgya dionysíaca pós-artaudiana? Bem, seja como for, leio que o debate, que é hoje, terá a presença do próprio ser zé-célsico e de um psicanalista. Não é por nada, mas acho que eles deveriam ter chamado um psiquiatra -com uma camisa-de-força à mão, just in case.
POESIA TRIBALISTA

Ontem, um amigo que sabe da minha admiração pelos Tribalistas (o mais novo programa de índio da música brasileira) me abordou com as seguintes palavras: "Trio. Tripé. Triângulo. Tribalistas". Eu ri e perguntei: "Você está inventando isso agora?" Ele: "Não, vi o Arnaldo Picaretunes dizendo isso, a sério, na TV. Que pena que você perdeu [sorriso cínico irreproduzível]". Bom, nunca é tarde para, com a inestimável ajuda do "Houaiss", dar minha contribuição a esse "chef d'oeuvre" da poesia tribalista: "Tripa. Tribufu. Tricô. Triglicérides. Trilegal. Triste-Bahia-oh-quão-dessemelhante. Three to get ready. Tripanossoma, tripanossoma, tripanossoma!" (A repetição da última palavra é importantíssima para acentuar o caráter protozoário da coisa.)

2.11.02

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL 30

Julio Cortázar (1914-1984)

"Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você -eles não sabem, o terrível é que não sabem- dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio."

("Preâmbulo às Instruções para Dar Corda no Relógio", em "Histórias de Cronópios e de Famas", 1962.)