29.11.03

CITAÇÕES GENETICAMENTE MODIFICADAS

"Não se nasce mulher, torna-se. Vejam a Roberta Close."

Simone de Peignoir (copyright by Zé Simão), aquela que, como dizia o Sartre, não tinha a menor vaidade e era mulher de verdade.

28.11.03

HAICAIS GOIABAIS

Poetas em bando
enchem livros com haicais:
três versos sobrando.

Concretinos são
um ninho de mafagafos
com pós-graduação.

Moderna proposta:
filosofal, a arte faz
merda virar bosta.

Platão não ensina:
há música na caverna,
mas só Maria Alcina.

Sejamos honestos:
ser brega é nosso destino
sempre manifesto.

(D'après Millôr, Matsuo Bananeira e Paulo Lemingue, poeta míope que se distraiu com um trocadilho e haicaiu no mar. Orai por ele.)

27.11.03

NO MUNDO DAS BROAS DE MILHO TRANSGÊNICAS

Eu venho de um mundo em que os professores universitários escrevem livros com títulos como "Anabasis Glauber". Pensei que esse fosse o nome de um filme experimental do início dos anos 70, aquela coisa esquisita que nascia do encontro entre gente subnutrida, sem iodo na alimentação, e uma vontade louca de "quebrar a linearidade do discurso". Imaginei Glauber -ou um sósia dele- andando em círculos numa sala fechada, com a câmera fixa. Ele entra e sai do foco, puxa os cabelos, gesticula, grita algo sobre o Terceiro Mundo. Às vezes pára e coça a bunda. Ou mostra uma foto de Marilyn Monroe pelada enquanto recita trechos do Livro Vermelho de Mao. Ou faz qualquer outra coisa inteligente.
(Logo descobri que eu estava, como diria o Millôr, "roundly mistaken": quando um fã do Cinema Novo encontra outro no Espaço Unibanco, eles se cumprimentam dizendo "anabasis Glauber!" e fazendo com a mão aquele sinal do sr. Spock. Depois vão de mãozinhas dadas assistir à última película do Bressane.)

No mundo de onde eu vim, escritores lançam revistas de poesia "pós-utópicas" em CD-ROM e dizem que sua intenção é "provocar a linguagem". Dona Linguagem, que não gosta de provocações, mandou dizer que não estava, mas sua paciência é curta: mais um pouco e ela remeterá os pós-utópicos à pós-puta-que-os-pariu. Enquanto isso não acontece, penso em enviar aos editores do CD minha obra-prima , que resume e transcende o concretismo. Digitalmente retrabalhada, com animações em flash y otras cositas, ela pode fazer mais sucesso que o tal vídeo da Paris Hilton.

26.11.03

I FEEL GOOD, PANANÃ-NANÃ-NANÃ

O bancário Odivã de Jesus, solteiro, 27 anos, transforma-se quando acessa a internet. Como ninguém vê sua cara de nerd com espinhas, seus óculos de grau e seu aparelho fixo, ele passa a ser Jaime Bráulio, um dos 57 filhos bastardos de James Brown. Jaime Bráulio apresenta-se como Soul Blogger Number One ou "the hardest working man in blog business". Enquanto escreve seus elaborados posts, que consistem basicamente em quatro frases -"aaaaauuuuu!", "get up!", "hit me now!" e "take me to the bridge!"-, Jaime Bráulio dança, embora não se arrisque mais a fazer aquele passo em que seu ídolo desce até o chão com as pernas abertas, uma esticada para a frente e outra para trás (Odivã já operou os testículos três vezes por causa disso). Às vezes, ajoelhado diante do terminal, joga sobre as costas, como um manto, o cobertor da sua avó e diz para si mesmo: I feel good, pananã-nanã-nanã.

Mas a vida é difícil para Odivã. Ele sabe que jamais conseguirá realizar seu sonho de fundar um Sindicato dos Imitadores de James Brown, com Toni Tornado como patrono -branco, dentuço e magricelo, seria expulso dele no primeiro dia. Também sabe que, fora da internet, jamais conquistará mulheres saídas de filmes "blaxploitation". Consola-se, porém, ao pensar que escapou de ser preso pelo menos 89 vezes -e mesmo no caixa, das dez às quatro, ele é feliz. Só lhe falta coragem para abordar Claudete, a colega gostosona, e sussurrar "shake your money maker" no ouvido dela.

25.11.03

MEU BRASIL BRASILEIRO

O Brasil é um bom lugar para fazer um golfo, como dizia Graciliano Ramos a respeito de Alagoas. O Brasil é um bom lugar para fazer uma terraplenagem e transformar tudo em estacionamento para os argentinos irem à praia (o que eles não farão, já que no tienen un puto en los bolsitos). O Brasil é um bom lugar para devolver aos índios e pegar os espelhinhos de volta, afirmou Luis Fernando Verissimo no tempo em que ainda não era um humorista-a-favor, essa contradição em termos. O Brasil é um bom lugar para anexar ao Paraguai, já que se trata de um país falsificado. O Brasil é um bom lugar do qual fugir. O Brasil é um bom lugar para passar fome. O Brasil é um bom lugar para vomitar muito depois de comer mocotó estragado. O Brasil é um bom lugar para corrupção, assaltos, assassinatos, estupros e outras modalidades esportivas igualmente divertidas. O Brasil é um bom lugar para contrair uma infinidade de doenças, rebolar e achar que é tudo lindo. O Brasil é um bom lugar para gente burra ser feliz (ou não). O Brasil é um bom lugar para não ter dentes ou, em possuindo bons dentes, não ter educação, respeito, cultura, neurônios. O Brasil é um bom lugar para que filhos da puta se dêem bem e gente honesta se estrepe de verde-e-amarelo. O Brasil é um bom lugar para produzir putas "for export" e péssima literatura idem. O Brasil é um bom lugar.

23.11.03

PARA DAR UM FIM À NOITE DE AUTÓGRAFOS

A noite de autógrafos é a invenção mais hedionda do Ocidente desde a empalação -e há quem sustente que a segunda oferece um suplício menor e mais rápido. Consiste em um grupo de imbecis pretensamente letrados que, não contentes em adquirir o livro de um cretino ainda maior, acham que a obra valerá mais se for assinada (às vezes, o objetivo é verificar se o cretino-autor sabe ao menos escrever o próprio nome. Na maioria dos casos, não sabe). Tudo isso regado a muito vinho-alemão-da-garrafa-azul em copinhos de plástico. É a própria expressão da hediondez.

Destarte -desculpem, eu estava louco para escrever "destarte" num post-, proponho que a instituição "noite de autógrafos" seja abolida, exceto nos casos em que a obra não exista. Aí, sim, faz sentido autografar guardanapos de papel e braços engessados -se for possível quebrar alguns braços para engessá-los e depois autografá-los, melhor ainda. Mas, se você é um desgraçado que teve a infeliz idéia de pôr mais um livro horrível num mundo já repleto deles, sugiro uma destas três opções: 1) Contrate o bufê dos Confeiteiros Sem Fronteiras e promova uma noite de tortadas na cara do autor. Cada livro adquirido dá direito a uma tortada; quem comprar mais de um poderá puxar o autor pelos cabelos, com força, e enfiar sua cabeça num delicioso bolo de marshmallow. 2) Institua a "noite da pegadinha literária". Os convidados devem fazer fila diante do autor, que estará de braguilha aberta. Cada livro dá direito a uma pegadinha na benga; chacoalhadinha, só para quem comprar vários exemplares e/ou tiver as mãos macias. 3) Construa um labirinto para os convidados. Quem quiser chegar aos livros, aos canapés ou ao vinho terá de descobrir o caminho que leva ao centro e, uma vez lá, deixar-se lamber pelo Zé Celso durante três minutos e 47 segundos. Quem negará que tudo isso é muito menos horripilante que uma noite de autógrafos?

21.11.03

A VERDADEIRA MAIONESE

No fim dos anos 60, Nelson Rodrigues disse (ou escreveu, não sei) que o verdadeiro Alceu Amoroso Lima era o pensador católico Gustavo Corção. Mais modestamente, digo o seguinte aos senhores leitores: Ruy Goiaba é uma fraude, e o verdadeiro puragoiaba é a revista digital Trópico. Caio em profunda depressão sempre que a leio. Por mais que eu me esforce, jamais produzirei frases geniais como "no tempo do nomadismo wireless, a interface é a mensagem", "processos de subjetivação de um eu que não é mais em relação a si mesmo, mas à sua capacidade de conectividade" ou "novos paradigmas de uma escritura que se realiza no fluxo". Não dá para competir com isso. Sinto muito, mas vou pedir o boné.

Ah, sim: a página de entrada da Trópico inclui link para um trecho do novo romance de Marcelo Mirisola, aquele sujeito que, segundo o relato de Paulo Polzonoff, diz escrever "com os colhões". É evidente que Mirisola não merece nosso escárnio, mas sim nosso respeito e nossa admiração: deve ser triste a vida de um escritor deficiente, obrigado a viver com uma caneta enfiada no esfíncter anal para que seus testículos possam escrever. Sejamos piedosos.
BOOGIE WUNDERLAND

Propus um "Theme from 'The Wunders'" aos meus comparsas wunderbloggers, como uma espécie de hino do portal. Ele deve ser cantado, é claro, sobre a melodia do tema dos Monkees. Assim como eles, nenhum de nós é um virtuose instrumental (exceto, modéstia à parte, eu, que toco órgão e pego na baqueta ao mesmo tempo). Mas nenhum dos wunderfellows pareceu muito interessado em usar perucas -e, ademais, já existe um hino melhor, que é o "There Are Bad Times Just Around the Corner", do Noël Coward. De todo modo, quem quiser cantar pode seguir a bolinha.

Here we come
Walkin' down the street
We get the strangest looks
From everyone we meet

Hey, hey, we're the Wunders
And people say we wunder around
But we're too busy thinking
To put anybody down

We're just trying to be friendly
Come and watch us write and play
To hell with the young generation
They ain't got nothing to say

19.11.03

NO PAÍS DOS CRONISTAS POLÍTICOS

No país dos cronistas políticos as pessoas não dirigem carros ou motos, mas sim rolos compressores. No país dos cronistas políticos ninguém conversa, todos articulam acordos de bastidores. No país dos cronistas políticos existem propinodutos: basta que as pessoas abram a torneira da pia para que os dólares jorrem. Todos andam sempre com camisas de colarinho branco (mesmo na praia), circulam com malas pretas, falam palavrões como "substitutivo" sem enrubescer e contraem gripes cafonas com nomes de presidentes ("gripe Sarney", "gripe Itamar" etc.). Tudo no país dos cronistas políticos se parece com uma charge do Chico Caruso no "Jornal Nacional". O país dos cronistas políticos é pior que qualquer círculo do inferno de Dante. Eu já pedi asilo na África, que é uma agência do Nizan Guaranaes, mas é limpinha. Viverei perto de Byafra, que canta eternamente "voar, voar, subir, subir" em seu piano de cauda branco, ou entre os tutsis, aquela tribo em que todos têm a cara do Dustin Hoffman travestido.

18.11.03

CONCERTOS PARA A JUMENTUDE

Eu achava que Gerald Thomas, o lorde Bundinha, era um idiota por acreditar que o prelúdio de "Tristão e Isolda" precisava ser ilustrado por uma mulher se masturbando. Pensava que Thomas tratava o público à sua imagem e semelhança, como audioanalfabeto funcional -gente que não sabe ouvir e faz questão de que a música lhe seja explicada por meio de figurinhas.

Mas o lorde Bundinha sabe das coisas: a maioria das pessoas é mesmo audioanalfabeta funcional. E Robertão, há trinta anos, já dizia que todos estavam surdos ("Lá, lalalalalá-lá, lalá-lalá, lalalalá, l-lalá-l-lá-l-lalala." Sempre achei essa uma de suas letras mais expressivas). Para mim, ficou claríssimo que a música dita erudita* vai estrebuchar e morrer se não for traduzida em imagens.

* POEMA CONCRETO INCIDENTAL (à moda do Radá)

dita
erudita
eros-dita
desditadura

Sendo assim, começo por oferecer gratuitamente duas propostas de vanguarda a diretores de orquestra que não tenham medo de ousar. 1) Uma encenação dos "melhores momentos" da 3ª Sinfonia de Beethoven, a "Heróica", com um ator representando Napoleão -de chapéu- em pleno fuquefuque com a imperatriz Josefina e gritando "allons, enfants de la patrie!" na hora do clímax. Sem isso, é impossível entender o que o Surdinho queria dizer quando compôs. 2) Da mesma forma, "A Sagração da Primavera" só será plenamente compreendida quando sua encenação incluir os dois caras do Pet Shop Boys dançando pelados. Acho que o Neil Tennant topa até sem cobrar cachê, for the sheer pleasure of it. Ui!

17.11.03

ISSO AQUI TÁ MUITO BOM, ISSO AQUI TÁ BOM DEMAIS

Como bom marxista grouchiano, sempre desconfiei de clubes que me aceitassem como sócio. Mas o wunderclube, apesar de mim, está ficando mais bem freqüentado que a Hípica (refiro-me, obviamente, aos cavalos da Hípica, muito mais inteligentes que os seus donos). Então, parem de perder tempo por aqui: visitem os novos endereços de César Miranda -que, como diria Chacrinha, é "o rei da juventude epigramista do Brasil"- e do pós-beckettiano Daniel "Livros do Mal" Pellizzari, que já pôs seu "mojo" para funcionar. Diversão garantida ou seu Wittgenstein de volta, rapá.
ANTI-RUY GOIABA (OU NÃO)

"Não gosto dessa conversa desses marxistas que ficam dizendo que democracia é uma questão meramente formal, uma máscara formal para manter a opressão. Não é, não. A democracia é algo fundamental, importante em si. É preciso defendê-la inclusive desses salvadores socialistas que terminam virando ditadores que ficam 50 anos no poder, que proíbem oposição, têm um jornal só, matam opositores, prendem dissidentes."

Vocês jamais imaginaram me ver elogiando este cara, não? Pois eu subscrevo as declarações acima, reproduzidas pela Falha do último sábado -e também tenho de reconhecer que o gajo é um pioneiro da inclusão digital (faz pelo menos uns 35 anos que ele é incluído digitalmente e gosta). O problema é que, agora, estou sentindo uma vontade meio estranha de dançar pro meu corpo ficar odara e desentristecer meu coração tão só. Então me dêem licença, que eu vou ali ser comido pelos caetés e já volto. Ou não.

14.11.03

PETIT JEAN TRENTE E O ANCIEN RÉGIME

Meu caro Bruno Garschagen, num ótimo post, explicita seu horror ao Carnaval. Com isso, ele se inscreve na tradição jacobina -afinal, como se sabe, o objetivo da Revolução Francesa era acabar com o baticum da nobreza. Os carnavalescos, por exemplo, surgiram no Ancien Régime e eram responsáveis pelas roupas, alegorias e adereços do Palácio de Versalhes. Diz-se que Luís XVI empregava uns 600, todos com a boca torta (inclusive um antepassado do Clóvis Bornay, que foi dos poucos a escapar da guilhotina). Fontes fidedignas asseguram, ainda, que aquela iniciativa de mudar o calendário e chamar os meses de Brumário, Messidor, Frutidor etc. foi para que os foliões não soubessem mais quando era fevereiro e parassem de pentelhar a nação com essa história de Carnaval.

Não adiantou nada. O populacho, que gostava de luxo (nas sábias palavras de Petit Jean Trente), continuou cantando “A Cabeleira do Danton” (“corta a cabeça dele, uh-uh, corta a cabeça dele”) e entoando o grito de guerra “ê-ô, ê-ô, Robespierre é o Terror”. E, como prova o quadro “A Liberdade Conduzindo o Povo”, do Delacroix, porta-estandartes com os peitos à mostra continuaram desfilando pelas ruas de Paris. De lá pra cá, é certo, só piorou: naquele tempo, pelo menos, não existiam carros alegóricos com o Miguel Falabella em cima gritando "le jour de gloire est arrivé!".
DIÁLOGOS IMPERTINENTES

Sem sono, assisto no GNT ao documentário "Recife/Sevilha", sobre vida e obra de João Cabral de Melo Neto. No trecho mais divertido, Cabral relembra um encontro com seu amigo (e, como ele, diplomata) Vinicius de Moraes. O segundo foi visitar o primeiro em Genebra, no início dos anos 60, e cantou algumas músicas -nas palavras de Cabral, "aquelas coisas de bossa nova, falando de coração e tal". O "pocket show" de Vinicius foi gravado numa fita de rolo. Em dado momento da gravação, ao fundo, Cabral dá uma alfinetada: "Sem ser de amor você não sabe fazer, né?". Vinicius ri e retruca: "Vou pôr uma musiquinha naqueles seus poemas da cabra, João. Aqueles em que você fala de pedra, sabe como é?". Claro, isso foi antes de os poemas de "Morte e Vida Severina" serem musicados pelo Bardo Fanho do Brasil. Há quem reclame das "machines à emouvoir" ("máquinas de emocionar", expressão de Le Corbusier) do João Cabral. Bobagem, claro. Eu já penso que, na obra do Vinicius, um pouco mais de pedra teria sido muito bem-vindo.

12.11.03

Ô, DA POLTRONA!

Tudo o que eu sempre quis que o puragoiaba fosse está resumido num antigo quadro dos Trapalhões, da época em que gigantescos répteis andavam sobre a Terra e Renato Aragão era um sujeito engraçado (quem o vê hoje não acredita nisso. Até Dedé Santana falando de sua conversão é mais divertido). Esse quadro foi citado, há tempos, pelo recém-ressuscitado Zeitgeist. Didi (Aragão) e Zacarias (Mauro Gonçalves), vestidos como pai e filha, cantavam uma música inspirada em pastoris do Nordeste, que sempre começava com "Papai, eu quero me casar". Havia várias versões, mas a melhor de todas -que eu só entendi alguns anos depois- era esta: "Papai, eu quero me casar." "Ô, minha filha, ocê diga com quem." "Eu quero me casar co' Marlon Brando." "Co' Marlon Brando ocê num casa bem." "Por quê, papai?" "O Marlon Brando manteigou a Maria Schnaida e adespois vai manteigá ocê também."

Misturar Pastoril do Faceta com "O Último Tango em Paris" seria minha realização como blogueiro. Mas cheguei tarde. Só me resta, como diz o Dante, rezar para Walter Mercado e fazer a cobra subir.

11.11.03

DA IMPOSSIBILIDADE DE UM BUÑUEL BRASILEIRO

Se don Luis, "ateu graças a Deus", tivesse nascido no Bananão, jamais conseguiria se tornar um cineasta importante -daria, quando muito, um razoável diretor de videoclipes para a Conspiração. A explicação é simples: surrealismo, cinematográfico ou de outro tipo, depende do contraste com uma realidade mais ou menos ordenada. Ora, o Brasil-sil-sil já é surrealista. Dêem uma espiada nos tipos que freqüentam o Congresso ou leiam a Caras. Diante disso, Buñuel, Breton, Aragon e todos os outros são sub-realistas, uns branquelos europeus sem imaginação e sem graça.

Peguem, por exemplo, "O Anjo Exterminador". Nesse filme, o dono de uma mansão e seus convidados para um jantar são incapazes de sair da casa -embora, aparentemente, nada os impeça- e vão, pouco a pouco, se animalizando. No Bananão, esse é um enredo tão banal que chega a ser água-com-açúcar: quem quer que tenha ido a um concerto na Sala São Paulo (ou, como o Amarar, à festa de entrega do prêmio Portugal Telecom) já testemunhou cenas de selvageria muito piores na corrida ao estacionamento ou na disputa pelo salmão defumado. Darwinismo em ação é isso aí.

Para Buñuel, escritores de "segundo time" como Hemingway só faziam sucesso devido à hegemonia cultural e política dos EUA. Mas o próprio cineasta deve sua fama ao fato de ter nascido na Espanha. Aqui, humilhado pela realidade, não passaria da direção de clipes para os engraçadinhos do Bidê ou Balde. E olhe lá.

9.11.03

COMANDO TERRORISTA DA TERCEIRA IDADE

Philadelpho Philomeno, meu velhinho serial killer, voltou sedento de sangue de sua temporada numa estância hidromineral. Sua mais nova idéia é arregimentar um grupo de idosos para um ataque ao Ministério da Previdência, substituindo os fraldões geriátricos usados -sua arma preferida e mais letal- por coquetéis merdotov. É, penso eu, uma boa resposta a quem acha que todo aposentado com mais de 90 anos é fraudador até prova em contrário. Não sei se o comando terrorista nonagenário obterá sucesso, mas, se eu fosse o sr. Ricardo Berzoini, não desgrudaria mais a bunda da parede. Philadelpho e sua bengala empaladora, piores que Dirty Harry e sua Magnum 44, estão louquinhos para encontrá-lo.

7.11.03

PEQUENA ANTOLOGIA GOIABAL

Joseph Brodsky (1940-1996)

Eu era apenas quanto
a tua mão tocasse
ou sobre o que inclinavas,
no breu da noite, a face.

Eu era, embaixo, quanto
notavas turvo, apenas:
traços, no início, vagos;
feições, mais tarde, plenas.

Foste quem logo, ardente,
criou-me a sussurrar,
seja à direita, à esquerda,
a concha auricular.

Foste, a agitar cortinas,
quem, na umidade cava
da boca, introduziu-me
a voz que te chamava.

Eu era cego e, vindo,
sumindo-te de mim,
doaste-me a visão.
Fica um vestígio, assim.

E, assim, criam-se mundos
que são postos de lado,
girando, quando prontos,
presente abandonado.

Em meio, pois, de treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio.


(Poema sem título, de 1981. Tradução de Boris Schnaiderman e do "Major" Nelson Ascher. Brodsky, Prêmio Nobel de Literatura em 1987, merecia ser bem mais conhecido por aqui. Vá atrás dos poemas e dos ensaios -é uma pena que as edições brasileiras de "Less Than One" e "Watermark" estejam, até onde sei, esgotadas.)

6.11.03

QUANTO TEMPO, POIS É, QUANTO TEMPO

Dois anos de puragoiaba hoje. Quem diria.

Leitores que me aturam há tanto tempo merecem ser recompensados. Estou pensando numa promoção -nem que seja só para usar o maravilhoso slogan "o puragoiaba faz aniversário, mas quem ganha o presente é você". Aguardem novidades nos próximos posts. Enquanto isso, sirvam-se à vontade dos meus sanduíches de mortadela e taças de sidra virtuais. Saúde!

5.11.03

MARCHINHAS LITERÁRIAS

1) Para leitores francófilos

Olha a cabeleira do Prévert
Será que ele é, será que ele é (bi-cha) (2x)

Será que ele é mallarmado
Será que ele é Bodelér
Rambô diz que ele é transviado
Mas isso eu não sei se ele é

Corta o cabelo dele
Corta o cabelo dele


2) Para fãs do concretismo

Lá em casa tinha um concretino
Concretino fazia mingau
Concretino foi quem me ensinou
A tirar o cavaco do Pound

Trepa, Haroldo, siri tá no Pound
Eu também sei tirar o cavaco do Pound


(Repita a segunda estrofe várias vezes, mudando apenas os nomes: "trepa, Augusto, siri tá no Pound", "trepa, Décio, siri tá no Pound", "trepa, Antunes, siri tá no Pound" e assim sucessivamente.)

3) Para fãs do Bruxo do Cosme Velho

Maria Machadão, Machadão, Machadão,
De dia é Quincas Borba, de noite é Rubião (bis)

O Machadão está na moda
O mundo aplaudiu
É um barato, é um sucesso
Dentro e fora do Brasil
Ê-Ô, Ê-Ô, BODELÉR É O TERROR

"Tornar-se um homem útil sempre me pareceu algo de muito detestável." "É preciso trabalhar, e se não for por gosto pelo menos por desespero; até porque, bem vistas as coisas, trabalhar é menos tedioso do que se divertir." "Não se deve pensar que o Diabo só tenta as pessoas de gênio. Não há dúvidas de que ele despreza os imbecis, mas não desdenha os seus serviços. Pelo contrário, deposita grandes esperanças em sua ajuda." "O poeta, o padre e o soldado são a única coisa que ainda há de grandioso entre os homens: o homem que entoa o seu canto, o que abençoa, o que sacrifica e se sacrifica. O resto é feito para o chicote." "Desconfiar sempre do povo, do bom senso, do sentimento, da inspiração e das coisas evidentes." "Sempre me admirei que deixassem entrar as mulheres nas igrejas. Que diálogo é que elas poderão estabelecer com Deus?" "Quanto mais um indivíduo cultiva as artes, menos trepa. Acentua-se o divórcio entre o espírito e a bestialidade. Só o bruto trepa bem: a trepada é o lirismo do povo."

(Todos esses são fragmentos de "Meu Coração a Nu" ("Mon Coeur Mis à Nu"), publicado em 1887, 20 anos após a morte de Bodelér. A tradução é de Fernando Guerreiro, para a edição da Nova Aguilar.)

4.11.03

TEM TARADO PRA TUDO NESTE MUNDO

Atendendo mais uma vez a recomendações médicas, estive fora de São Paulo e não li jornais nos últimos três dias. De volta à terra da chuva ácida, vejo no blog da Cam Seslaf que o "Painel do Leitor" da Falha de ontem publicou uma carta de um sujeito sobre o Ralouim. O cara, seguramente uma vítima de possessão aldorebeloníaca, escreveu a sério aquilo que eu escrevi de brincadeira por aqui: combatamos a dominação cultural, que se danem os mitos imperialistas, viva o saci, a iara, o curupira etc. (Parêntese para a segurança dos meus leitores: nunca, mas nunca mesmo, fiquem na mesma sala com alguém que escreve cartas para as seções de leitores dos jornais sem ter um spray de pimenta à mão. É sério.)

O que mais me chamou a atenção, contudo, foi o nome da associação a que o missivista pertence: Sociedade dos Observadores de Saci. Este mundo está perdido. Vejam bem: não é uma Sociedade Protetora dos Sacis, nem uma Sociedade dos Criadores de Saci, nem mesmo uma Associação dos Amigos e Moradores do Saci. São observadores -em bom português, voyeurs. Aquela piada da "sacia" que fica de três para o saci não é, portanto, piada, mas verdade: os integrantes da associação já viram isso e muito mais. Seu hobby é espancar macacos enquanto assistem a fenomenais surubas sacízicas em matinhos privês.

Não nego, porém, que esses pervertidos abrem um maravilhoso filão para o cinema pornô nacional, também vítima dos ataques do imperialismo (fora, Buttman; queremos o Homem-Rabo). Sexo, broa de milho e folclore: o negócio é misturar Câmara Cascudo com a rua Aurora. Prevejo, desde já, a ascensão do saci Jão Simão, o John C. Holmes culturalmente correto. Eis um possível diálogo de um dos seus filmes: "Jão Simão, você tem as duas pernas! Não é um saci de verdade." "Meu bem, isto não é uma perna." "Uaaaaau..."

1.11.03

NÃO BASTA IR À MOSTRA, TEM QUE CONTRIBUIR

Parei de ir à Mostra de Cinema de São Paulo porque meu médico me advertiu de que cada filme iraniano que eu via era equivalente a quatro maços diários de Derby sem filtro e encurtaria minha expectativa de vida em uns 20 anos. Como levo muito a sério recomendações médicas, de uns dez anos para cá só fui à mostra uma vez -porque o intestino assim o quis. Descobri que o sundae-bomba que eu tomara numa lanchonete de Cidade Jardim estava tendo efeito imediato e devastador antes mesmo que eu chegasse em casa. Parei o carro na frente da então Sala Cinemateca e me dirigi à bilheteira. "Boa tarde", disse a moça. "O senhor veio ver o filme da mostra?" "Não, senhora. Vim só dar uma cagadinha. Onde é o banheiro?" "Ah, não. As pessoas vêm aqui para assistir às cagadinhas dos diretores, não para fazer as suas próprias. Terei de lhe cobrar o quádruplo do preço do ingresso." "Minha senhora", eu disse, entredentes, com o melhor argumento que a cólica me permitia, "não sou cineasta, mas sou um artista conceitual e performático. Vou expor na Bienal minha obra no banheiro da Cinemateca, dando a vocês os devidos créditos. Não se pode barrar a arte que vem das entranhas." Comovida, a bilheteira assentiu -e foi assim que contribuí para a produção cultural da mostra. E a Bienal nem sentiu falta das minhas esculturas.