31.5.05
O cedê veio com uma propaganda dentro, "The Top 10 Must-Have CDs of Miles Davis". Para cada um desses dez discos, uma pequena resenha explicando por que você, ouvinte impressionável, tem que tê-los. A de "Bitches Brew", de 1969, diz o seguinte: "Farewell, once and for all, to wearing Brooks Brothers suits and playing 'My Funny Valentine'. Time for bell-bottom trousers and 'Miles Runs the Voodoo Down'". Como se isso fosse bom, diabos. Os discos de Miles Davis a partir da década de 70 ficaram tão démodés quanto as calças boca-de-sino e, em alguns casos, ridículos como velhas fotos de família com um parente seu usando as tais bell-bottom trousers (em geral, aquele seu tio que também usava costeletas e andava de Maverick. Você teve um tio assim, não negue). E o que ele gravou nos anos 50, tão indémodable como um bom terno da Brooks Brothers, poderia ter sido gravado ontem. Ou amanhã. Vamos, então, ouvir "My Funny Valentine", versão de 1956, e acender uma vela pelas numerosas vítimas do espírito do tempo.
30.5.05
Discípulos do Jesus Ilusionista
Sim, acreditamos que Jesus foi o primeiro dos prestidigitadores. E o maior dos ilusionistas. Exato, uma espécie de precursor de Houdini. Ou de David Copperfield. Mas muito superior, não tem nem comparação. Todos aqueles milagres que a Bíblia narra, a transformação de água em vinho, a multiplicação dos pães e dos peixes, andar sobre as águas -rapaz, imagine o que era fazer isso na Galiléia de, sei lá, dois mil anos atrás. Sem nenhum, nenhunzinho, dos recursos tecnológicos que a gente tem hoje. Deve haver algum manuscrito do mar Morto que não chegou até nós, explicando os truques e tal. Cremos nisso. Sim, a ressurreição também. Heresia? Não, de jeito nenhum. Claro, acusam a gente o tempo todo, mas as pessoas têm que entender que a nossa profissão é que é sagrada. "Mágico", ora essa. No que é que todo mundo pensa quando diz "mágico"? Naqueles caras que ficam fazendo truques com cartas em festinha de criança. Sim, fazemos isso também, precisamos ganhar a vida, mas olhe: somos Discípulos do Jesus Ilusionista. É assim que gostamos de ser chamados. O quê? Esses guinchos lá no fundo? Ah, não é nada, é minha criação de darwinistas. Exato, para os números de ilusionismo. Não, pode chegar perto, não tem perigo. Antigamente eles ficavam mesmo jogando cinco-contra-um, se é que você me entende, e arremessando cocô nas visitas. Mas desde que coloquei um laptop na jaula eles se aquietaram. Sim, em uma série de truques. Bom, serrados ao meio eles são. É, de verdade.
26.5.05
O verdadeiro Capitão Cueca
Não é o personagem de livros infantis, mas aquele rapaz de pança proeminente e cuecão-com-o-elástico-meio-frouxo que foi visto salvando um carro da enchente aqui na terra da chuva ácida. À diferença do Popular, conhecido personagem de LFV, Capitão Cueca é participante, interativo e cidadão: já salvou crianças de incêndios, resgatou pessoas soterradas por deslizamentos, trouxe à praia banhistas quase-afogados e evitou que alpinistas congelassem. Tudo com uma mão só, enquanto a outra segurava a cueca bege (ou branca-encardida, não se sabe ao certo) que ameaça perpetuamente deixar-lhe o rego exposto. Suas camadas de gordura e pêlos o tornam imune a altíssimas e baixíssimas temperaturas, ao tifo e à esquistossomose; além disso, em rios, inundações e no alto-mar, sua Zorba inflada pode se converter num hovercraft. Herói de nossa gente, sem sombra de dúvida.
Embora discreto, Capitão Cueca só não dá entrevistas porque não é procurado: sabe-se que, como Pelé, Ayrton Senna, o Efelentífimo e todos os grandes heróis brasileiros, ele só abre a boca para dizer merda. Eu mesmo o entrevistei, tempos atrás: "Capitão Cueca, qual a razão desse seu uniforme?". O herói ficou alguns segundos calado, certamente para elaborar melhor a frase, deu um meio-sorriso característico de gente muito sábia e proferiu: "Ah, sei lá. É uma vivência sensual, entende?". Tentei explicar ao Capitão Cueca que empurrar Fusca na enxurrada era sua vocação, seu destino manifesto: ele não deveria nunca, em hipótese alguma, meter-se a pensar. Não sei se adiantou. A esta altura, já deve ter virado blogueiro, daqueles que escrevem com o rego à mostra. Paciência.
Embora discreto, Capitão Cueca só não dá entrevistas porque não é procurado: sabe-se que, como Pelé, Ayrton Senna, o Efelentífimo e todos os grandes heróis brasileiros, ele só abre a boca para dizer merda. Eu mesmo o entrevistei, tempos atrás: "Capitão Cueca, qual a razão desse seu uniforme?". O herói ficou alguns segundos calado, certamente para elaborar melhor a frase, deu um meio-sorriso característico de gente muito sábia e proferiu: "Ah, sei lá. É uma vivência sensual, entende?". Tentei explicar ao Capitão Cueca que empurrar Fusca na enxurrada era sua vocação, seu destino manifesto: ele não deveria nunca, em hipótese alguma, meter-se a pensar. Não sei se adiantou. A esta altura, já deve ter virado blogueiro, daqueles que escrevem com o rego à mostra. Paciência.
25.5.05
De Sartre a Timóteo em 30 segundos
O Flagelo de Sodoma observou que Nelson Rodrigues conseguia descrever em algumas linhas aquilo que Ortega y Gasset precisou de um livro inteiro para explicar -a explosão triunfal dos idiotas. Contudo Ortegón, por sua vez, em apenas um parágrafo de "A Rebelião das Massas" -ao qual ele nem deu muita importância-, antecipou e resumiu o existencialismo. Vejam: "Circunstância e decisão são os dois elementos essenciais de que se compõe a vida. A circunstância -as possibilidades- é o que nos é dado e imposto em nossa vida. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não escolhe seu mundo, mas viver é encontrar-se, de início, num mundo determinado que não pode ser trocado: neste de agora. Nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra nossa vida. Mas essa fatalidade vital não é semelhante à mecânica. Não somos disparados sobre a existência como a bala de um fuzil, cuja trajetória já está absolutamente determinada. A fatalidade com que nos deparamos ao entrar neste mundo (...) consiste no contrário. Em vez de nos ser imposta uma trajetória, nos são impostas várias, o que conseqüentemente nos força... a escolher. (...) Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão. Inclusive quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir".
E a coisa morre aí. Esse trecho é de 1926, bem antes que o anão vesgo (opa, opa, ser vertical e ocularmente prejudicado) enchesse páginas e páginas de prosa não raro abstrusa -sem consideração por aquela cortesia do filósofo, a clareza- com esse negócio de "o homem está condenado a ser livre", vendido, bien sûr, como uma idéia original. Mas, àquela altura, a ascensão flamejante dos idiotas já era um fenômeno consolidado entre leitores e letrados. Muitos anos depois, essa ascensão explica que seres que confundem trailer com thriller ou advertem para a "catequese subliminar" em obras de C.S. Lewis não só sejam considerados alfabetizados como passem por inteligentes. (Já que o espírito do tempo é esse, quero mandar uma mensagem aos pais conscienciosos: não exponham seus filhos pequenos a Agnaldo Timóteo cantando "A Galeria do Amor". Eles não verão a hora de chegar à puberdade para sair por aí dando a bunda, votando no Maluf ou as duas coisas juntas.)
E a coisa morre aí. Esse trecho é de 1926, bem antes que o anão vesgo (opa, opa, ser vertical e ocularmente prejudicado) enchesse páginas e páginas de prosa não raro abstrusa -sem consideração por aquela cortesia do filósofo, a clareza- com esse negócio de "o homem está condenado a ser livre", vendido, bien sûr, como uma idéia original. Mas, àquela altura, a ascensão flamejante dos idiotas já era um fenômeno consolidado entre leitores e letrados. Muitos anos depois, essa ascensão explica que seres que confundem trailer com thriller ou advertem para a "catequese subliminar" em obras de C.S. Lewis não só sejam considerados alfabetizados como passem por inteligentes. (Já que o espírito do tempo é esse, quero mandar uma mensagem aos pais conscienciosos: não exponham seus filhos pequenos a Agnaldo Timóteo cantando "A Galeria do Amor". Eles não verão a hora de chegar à puberdade para sair por aí dando a bunda, votando no Maluf ou as duas coisas juntas.)
24.5.05
National Geographic
Quem tem TV a cabo e assiste de vez em quando à TV5 sabe o quanto francês gosta de pobreza. Quando eles querem levar os telespectadores para visitar um zoológico sem sair do conforto do lar, mostram documentários sobre os hábitos éxotiques de miseráveis, às vezes aqui no Bananão, em geral numa das antigas colônias -hoje "departamentos de ultramar", porque, como vocês sabem, o que fere suscetibilidades são as palavras, não as coisas. Moradores de Paris não precisam ir longe para ver gente pobre, mas a distância santifica a todos, observados e observadores: o telespectador se sente bom como uma mistura de Cristo e Claude Lévi-Strauss, varado de luz como um antropólogo de vitral.
Muitas das coisas estranhas da Botocúndia -os partidos políticos, os artigos jornalísticos dos profissionais da compaixão, os blogues relevantes, os filmes nacionais e, dentro do apartamento chiquérrimo do filho d'algo, aquele livro do Sebastião Salgado sobre a mesinha Biedermeier- explicam-se pela mesma idéia: como a pobreza é bonita (e rentável) nas fotos da "National Geographic". Nunca imaginei que fosse torcer pelo dia em que as revistas viessem com mau hálito. De todo modo, já estamos quase lá.
Muitas das coisas estranhas da Botocúndia -os partidos políticos, os artigos jornalísticos dos profissionais da compaixão, os blogues relevantes, os filmes nacionais e, dentro do apartamento chiquérrimo do filho d'algo, aquele livro do Sebastião Salgado sobre a mesinha Biedermeier- explicam-se pela mesma idéia: como a pobreza é bonita (e rentável) nas fotos da "National Geographic". Nunca imaginei que fosse torcer pelo dia em que as revistas viessem com mau hálito. De todo modo, já estamos quase lá.
23.5.05
Ensaio sobre a tumescência
"O Olho do Sol" é nome de disco do Ney Matogrosso. Se não me engano, é aquele que tem "América do Sul", com o andrógino primordial vestido de homem-pássaro e rebolando em cima de umas pedras fálicas. Passava no "Fantástico". Toda vez que me perguntam se existe filosofia no Bananão, aponto para esse clipe ou para Baiano Meloso e os Trapalhões cantando "A Filha da Chiquita Bacana". Que "Great Books of the Western World" o quê.
20.5.05
A consolação da filosofia
Houve uma época em que eu pegava todo dia o ônibus da linha barbárie-decadência, ida e volta. Gente espremida, ar irrespirável e o trajeto mais feio do Ocidente. Na minha ignorância geográfica, eu acreditava que o caminho era o mais longo possível para evitar a exposição dos passageiros ao risco de um pneu furado bem no meio da -Deus nos livre- civilização. Até o dia em que conversei um pouco com o motorista e ele me explicou, enquanto coçava a orelha com a unha compridona do mindinho, que aquele era um circular, igualzinho ao da cidade universitária: não saíamos nunca da barbárie. Fiquei chateado, mas por pouquíssimo tempo. Hoje, ando sempre perto da janela do bumba e estico o braço direito para fora, exibindo aos passantes meu dedo médio fantasiado de Kant. Às vezes, grito "pega na coisa-em-si e balança". É divertido.
19.5.05
Quando eu morrer, me enterre na latinha
Alguns leitores certamente acharão lúgubre esse negócio de ficar pensando no próprio epitáfio (nenhuma relação com "Epitáfio Peffoa", na pronúncia do Efelentífimo). Bobagem. Primeiro, por ser uma óbvia prova de que estamos vivos. Segundo, porque quem leu "O Tema dos Três Escrínios" -viram, leitores psicanalistas? Também sei citar elogiosamente o tarado da Morávia- entende como é que a coisa funciona. Nesse texto, vocês sabem, Fróide analisa aquela cena d'"O Mercador de Veneza" em que os pretendentes à mão de Pórcia, entre eles Bassânio, devem escolher entre três escrínios, de ouro, prata e chumbo; quem encontrar o retrato dela em um dos três leva a moça. (Sim, é uma genial antecipação do Programa Silvio Santos, com Pórcia no lugar da casa própria, mas não é isso o que me interessa aqui.) Bassânio escolhe o terceiro escrínio -o de chumbo- e Fróide associa essa escolha à morte. Melhor: vê na idéia dos três escrínios uma tentativa de conferir algum caráter de escolha ao que é inevitável. Coisa parecida ocorre, talvez de modo mais claro, com os epitáfios: já que não se pode optar por não morrer, que a gente possa pelo menos dar alguns palpites na decoração (Oscar Wilde nas últimas, sobre o horrendo papel de parede do quarto de hotel em que estava: "One of us has to go").
Tudo isso para dizer que, por enquanto, meus epitáfios são dois, um literário e outro musical. Posso, é claro, mudá-los; espero não precisar recorrer aos serviços de nenhum médium para isso. O primeiro é este trecho inicial de "O Aeronauta", de dona Cecília:
Agora podeis tratar-me
como quiserdes:
não sou alegre nem triste,
humilde nem orgulhoso
—não sou terrestre.
O segundo é "Lotus Blossom", de Billy "Sweet Pea" Strayhorn, que já seria um gênio da música popular de todos os tempos se tivesse composto apenas "Lush Life". Quando seu amigo e braço-direito morreu, Duke Ellington, elegantiae arbiter, gravou um ótimo disco em sua homenagem, "And His Mother Called Him Bill" , cuja edição em CD contém duas versões dessa música. Uma traz só o duque ao piano; na outra, ele é acompanhado por um baixo e pelo sax-barítono de Harry Carney. É a segunda, minha preferida, que vocês podem ouvir clicando na nota abaixo. E descansem em paz.
Tudo isso para dizer que, por enquanto, meus epitáfios são dois, um literário e outro musical. Posso, é claro, mudá-los; espero não precisar recorrer aos serviços de nenhum médium para isso. O primeiro é este trecho inicial de "O Aeronauta", de dona Cecília:
Agora podeis tratar-me
como quiserdes:
não sou alegre nem triste,
humilde nem orgulhoso
—não sou terrestre.
O segundo é "Lotus Blossom", de Billy "Sweet Pea" Strayhorn, que já seria um gênio da música popular de todos os tempos se tivesse composto apenas "Lush Life". Quando seu amigo e braço-direito morreu, Duke Ellington, elegantiae arbiter, gravou um ótimo disco em sua homenagem, "And His Mother Called Him Bill" , cuja edição em CD contém duas versões dessa música. Uma traz só o duque ao piano; na outra, ele é acompanhado por um baixo e pelo sax-barítono de Harry Carney. É a segunda, minha preferida, que vocês podem ouvir clicando na nota abaixo. E descansem em paz.
18.5.05
Apontamentos para um futuro post
(Penso que a pobreza da filosofia e da literatura no Bananão se deve, em boa medida, à curiosa idéia de "vivência" comum à maioria dos brasileiros. Você ouve um habitante da Botocúndia falar em "viver!", com exclamação, e sabe de imediato que esse verbo exclui completamente: a) observação; b) raciocínio indutivo e dedutivo; c) leitura. Todas essas coisas, para um brasileiro, são feitas fora da vida; très éxotique, diria um francês do século 19 ajeitando seu monóculo. Claro, trata-se de uma noção infantil do que é a vida: criança é que não consegue ver nada -viver nada- sem pegar. Mesmo os sentidos se restringem ao tato e ao paladar. É por isso que o brasileiro acha que pegar a merda e pôr na boca é o único modo de "conhecê-la". Transfira isso para a vida mental da nação -cacófato premeditado- e você entenderá por que boa parte dos nossos so-called escritores jamais saiu da fase anal.)
(A supressão das capacidades de abstrair e de imaginar explica quase toda a nossa lixeiratura e o fato de ser mais fácil achar um pingüim no verão de Copacabana do que um filósofo submetido às mesmas condições climáticas. Não tenho a pretensão de dar conselho nenhum a quem escreve, mas suspeito de que algo como "tira a mão daí, menino!" seja um bom começo para todos nós.)
(A supressão das capacidades de abstrair e de imaginar explica quase toda a nossa lixeiratura e o fato de ser mais fácil achar um pingüim no verão de Copacabana do que um filósofo submetido às mesmas condições climáticas. Não tenho a pretensão de dar conselho nenhum a quem escreve, mas suspeito de que algo como "tira a mão daí, menino!" seja um bom começo para todos nós.)
17.5.05
Pequena antologia goiabal
Jorge de Lima (1893-1953)
Este é o marinho e primitivo galo
de penas reais em concha e tartaruga.
Com seu concerto afônico me embalo,
turva-se o vento, o Pélago se enruga.
Silencioso clarim, mudo badalo,
dos ruídos e ecos rápido se enxuga.
Jorra o canto sem voz de seu gargalo
e se encrespa no oceano em onda e ruga.
Galo sem Pedro, em pedra vivo galo,
de córneos esporões de caramujo
—tubas dos espadartes e cações.
O dia sem mistério, seu vassalo
esvai-se no seu bico imenso, em cujo
som as brasas da crista são carvões.
(Do "Livro de Sonetos", 1949.)
Este é o marinho e primitivo galo
de penas reais em concha e tartaruga.
Com seu concerto afônico me embalo,
turva-se o vento, o Pélago se enruga.
Silencioso clarim, mudo badalo,
dos ruídos e ecos rápido se enxuga.
Jorra o canto sem voz de seu gargalo
e se encrespa no oceano em onda e ruga.
Galo sem Pedro, em pedra vivo galo,
de córneos esporões de caramujo
—tubas dos espadartes e cações.
O dia sem mistério, seu vassalo
esvai-se no seu bico imenso, em cujo
som as brasas da crista são carvões.
(Do "Livro de Sonetos", 1949.)
16.5.05
Futebol é coisa de queima-rosca
Toda a alegada macheza do brasileiro se desfaz quando nos lembramos de que o esporte mais popular do Bananão é essa coisa despudoradamente uranista que atende pelo nome de futebol. Nenhum de seus componentes escapa: os jogadores que fazem almôndegas em campo e se patolam mutuamente, os torcedores que lamentam o fechamento das gerais do Maracanã por não poder mais se roçar gostoso, os repórteres que entram no métier (epa, opa) só para ver homem pelado nos vestiários, os comentaristas que cometem atos falhos do tipo "o ouvinte Sérgio pega no meu pau". De árbitros como Armando Marques e o finado Margarida nem é necessário falar. E quantos casos vocês conhecem de sujeitos que largam a mulher em casa para "bater aquela bolinha" com os amigos (no períneo, provavelmente)? Não se podia esperar outra coisa de um esporte criado no país do chamado vício inglês. Resta saber como a maioria dos brasileiros, que gosta dessa pirobagem, consegue se reproduzir. É tudo planária, pode apostar.
13.5.05
Diálogos impertinentes
"Nunca entendi por que o pessoal da Academia Brasileira de Letras usa as mesmas roupas dos Beatles na época do Sgt. Pepper." "É que eles são démodés, acompanham a moda pop com uns 40 anos de atraso. Na próxima década, todos vão se vestir como o Ziggy Stardust do Bowie. Depois vão virar punks, niuêives, góticos. Em 2030, o fardão já terá sido substituído por camisas de flanela, e aqueles que não tiverem cabelo usarão a peruca do Kurt Cobain." "Sei não. Não consigo imaginar o Arriando Suassunga de alfinete na bochecha." "Bom, então eles podiam se atualizar com um modelito new romantic, como o do Duran Duran no início dos anos 80. Mullets, mangas bufantes, dois ou três quilos de maquiagem. You're looking at planet Earth, bop-bop-bop-bop-bop-bop-bop-bop. Eles iam ficar bonitões, sobretudo o Zé Sarney. Não acha?" "Na verdade, acho que os imortais deviam mudar de carnavalesco. Contratar os Acadêmicos do Salgueiro parece uma boa idéia." "Pode ser. Ou os Acadêmicos do Tucuruvi. Sai mais em conta."
12.5.05
Afe
Esse era o rostinho de Tutancâmon, segundo a equipe de cientistas que tentou reconstruí-lo. Como vocês vêem, é uma mistura de Jorge Lafond com aquele traveco de "Traídos pelo Desejo", com um quê de Maria Alcina (obrigado, Dani). Que camuflava e solicitava, não há a menor dúvida -basta notar que Tut já nasceu maquiado, com pancake e delineador. Resta saber onde a biba escondia o obelisco (imagino sisudos egiptólogos diante dessa imagem, coçando a cabeça e indagando: "Eram os obeliscos vibradores?").
11.5.05
O argumento uruguaio
A existência do Uruguai é a melhor crítica à literatura moderna. É claro que vocês não vêem esse argumento por aí: todos os críticos, sem exceção, preferem ignorar os uruguaios para melhor louvar os modernettes. Mas, como se sabe, dois dos principais escritores franceses do século 19, prenunciadores do modernismo, e um do século 20 nasceram em Montevidéu: Lautréamont e aquele par de Jules, Laforgue e Supervielle. Pode-se argumentar que, sem eles, não existiria o modernismo francês e, sem os franceses, essa frescura não teria se espalhado pelo mundo. Ora, isso prova seu caráter de fraude. Que espécie de movimento literário é esse que depende do Uruguai para existir? Que não seria nada sem a Província Cisplatina? Fora o fato de que metade daquilo é a fazenda do finado Brizola e a outra metade é Punta del Este, balneário freqüentado por gente que vê o programa do Amaury Jr. E vocês acham que literatura tem algo a ver com aquilo ali? Francamente.
10.5.05
A poesia brasileira cabe num sofá
Sei que a reprodução da foto, de 1962, não é muito boa, mas ela prova que toda a história da poesia brasileira no século 20 pode ser espremida no mesmo sofá. Observem: Bandeira dirige-se a algum interlocutor fora da foto, talvez fora do mundo, dormindo profundamente. Drummond faz sua habitual imitação de pedra. Vinícius, malandramente, esgueira seu braço direito por trás de Cecília. E o larguíssimo sorriso de Cecília, ensanduichada por três grandes poetas -ah, como eram grandes!-, diz muito mais coisas do que toda a obra pornográfica de Hilda Hilst (Cecília, I'm down on my knees). Faltou só João Cabral, provavelmente por estar com enxaqueca e não suportar flashes fotográficos. Dizem que havia uma festinha de criança no mesmo ambiente, e um dos garotos perguntou a um adulto quem eram aqueles tios desconhecidos no sofá do fundo. "É a poesia brasileira", foi a resposta. "Ah, tá", disse o menino, antes de cair de boca nos brigadeiros da mesa ao lado.
(Adendo com a colaboração dos leitores: Murilo Mendes, de guarda-chuva aberto, está ouvindo Mozart embaixo do sofá. Atrás do sofá estão Jorge de Lima e a Negra Fulô. Adélia Prado está na cozinha, assando pão de queijo. Ferreira Gullar preferiu ficar na rua, distribuindo panfletos do CPC. Oswald de Andrade, que vestia só tanga, foi barrado na entrada e mordeu a mão do segurança. Num outro canto, os concretinos tentam, com muita dificuldade, resolver as cruzadinhas do Coquetel; um deles, talvez Haroldão, irá ao orelhão da esquina e ligará para Ezra Pound pedindo ajuda.)
9.5.05
8.5.05
O elixir do Dr. Pemberton faz mal à literatura
Rubem Fonseca, o homem invisível mais visível da lixeiratura brasileira, tem entre seus hábitos beber Coca-Cola quente. Está explicado: é por isso que, nos seus romances, os personagens passam o tempo todo peidando. Eu te disse, eu te disse.
(A primeira metade do título foi roubada do Pellizzari. Mas, até onde sei, ele bebe o elixir comme il faut, gelado. Assim, sim.)
(A primeira metade do título foi roubada do Pellizzari. Mas, até onde sei, ele bebe o elixir comme il faut, gelado. Assim, sim.)
6.5.05
Seven brides for seven brothers
Não costumo entrar nessas brincadeiras internéticas do tipo "passa o anel" (epa, opa), sobretudo quando são coisas vagamente cretinas como aquilo de abrir um livro na página 23,5 -ou sei lá qual- e transcrever no blogue a primeira frase encontrada. Também me recuso a chamá-las por aquele nome que, para o Elton, evoca imediatamente a Glória Maria. Mas esta aqui é batuta, porque me permite falar um pouco mais sobre livros; além disso, a coisa me foi repassada pelo Alexandre ("habemus Chesterton!"), que por sua vez a recebeu do Nuno Guerreiro, do blogue lusitano Rua da Judiaria. Como diria José Silvério, a bola veio mansa, pedindo "me chuta, me chuta": não posso fazer a esses dois craques a desfeita de incorporar Serginho Chulapa e dar um bico na direção das arquibancadas. Ripa na chulipa, portanto. Espero que minhas respostas casem bem com as sete perguntas literárias que seguem.
1. Não podendo sair do "Fahrenheit 451", que livro quererias ser?
Tem que ser um só? Por mim, eu seria a opera omnia do Machadão (que está na moda, o mundo aplaudiu, é um barato e um sucesso dentro e fora do Brasil). Sim, isso inclui aqueles romances da primeira fase, aqueles poemas parnasianos assim-assim, aquelas peças que ninguém lê e aquele montão de crônicas, sobretudo o artigo em que meu herói desce a ripa n'"O Primo Basílio" (o fato de que também gosto -e muito- do Eça notwithstanding). Se meu disco rígido não tiver memória suficiente, posso ser aqueles dois volumes de contos organizados pelo John Gledson para a Companhia das Letras, mais os romances de "Memórias Póstumas" em diante; forçado a escolher um só livro, é Brás Cubas na cabeça.
2. Já alguma vez ficaste perturbado/apanhado por uma personagem de ficção?
Sim, sem dúvida. Acho que o primeiro, quando eu era bem pequeno e estava começando a ler, foi a Alice do País das Maravilhas -não na tradução do livro de Lewis Carroll, mas na adaptação feita pelos estúdios Disney para o desenho animado, que ganhou uma versão em livro. Lembro que a Alice grandona, desproporcionalmente grande, era um pouco assustadora para mim. Bem mais tarde, já adulto, os personagens que mais me impressionaram foram basicamente dramatúrgicos. Menciono dois deles por razões quase opostas: a Antígona do Sófocles - com tudo o que a personagem diz sobre nobreza, honra, sacrifício- e, na vasta galeria dos shakespearianos, sir John Falstaff, aquele bufão que no fundo é também nobre, generoso. Próximo de nós, mas muito maior que nós, larger than life -e que triste é a cena de sua rejeição pelo príncipe Hal, depois rei Henrique V, no final de "Henrique IV". Dos mais modernos, cito a Joana D'Arc do Shaw, a um só tempo ingênua, irônica, insolente e obstinada (hum, essa frase merece um "ai, Creuza"); e Thomas Stockmann, o "inimigo do povo" de Ibsen. Nunca engoli o final dessa peça, forçadamente otimista: mas o "homem que mais pode porque está mais só" é, para mim, uma idéia fundamental que funciona como personagem.
3. O último livro que compraste?
Foram dois: "O Homem e a Gente", do Ortega y Gasset, e os "Collected Shorter Poems, 1927-1957", do Auden.
4. Os últimos livros que leste?
Bom, convém dizer, como preâmbulo, que minhas leituras são bastante caóticas: vários livros ao mesmo tempo, uns lidos ou relidos, outros apenas começados, alguns quase-terminados. Começo a lista com releituras: por ocasião da morte de Saul Bellow, revi o romance "Mr. Sammler's Planet" e muitos dos ensaios de "Tudo Faz Sentido" (até onde sei, há edição brasileira apenas do segundo). Bellow era muito bom, como ficcionista e como ensaísta. E reli "O Castelo de Axel", do Edmund Wilson, que ficou muito tempo fora de catálogo e foi relançado no ano passado ou neste. Fora esses, uma compilação de entrevistas de Vladimir Nabokov, "Strong Opinions"; a capa da minha edição é horrenda, mas o conteúdo compensa, porque Nabokov era sempre um ótimo entrevistado. "On the Pleasure of Hating", pequena coletânea de artigos do William Hazlitt. Três peças do Noël Coward num só volume, "Blithe Spirit", "Hay Fever" e "Private Lives" (gosto mais da primeira). "A Descoberta do Outro", do Gustavo Corção (menos interessante quando ele se põe a pregar, bem mais quando exercita aquele humor machadiano). "Poetas Franceses da Renascença", breve antologia traduzida por Mário Laranjeira e publicada numa coleção de clássicos da Martins Fontes. "Parte Alguma", o novo volume de poesias do Nelson Ascher. E a edição brasileira das poesias do T.S. Eliot, na péssima tradução daquele senhor que é presidente da ABL. Ah! Mais dois de leitura leve-e-agradável: "A Vida como Performance", perfis feitos pelo crítico teatral tarado Kenneth Tynan (a babação às vezes incomoda, mas há muita coisa boa, sobretudo o longo perfil de Louise Brooks), e a compilação das críticas do cinéfilo Moniz Vianna, "Um Filme por Dia". A última é ainda melhor se você tiver ao lado uma coleção de DVDs.
5. Que livros estás a ler?
Além dos que eu acabei de comprar (vide item 3) e da mesma maneira caótica: "Os Prazeres e os Dias", do Proust. Uma coletânea de contos do Maupassant (não essa tradução recém-lançada, mas uma mais antiga, feita pelo Mário Quintana). "The Secret Agent", do Joseph Conrad. "An Experiment in Criticism", do C. S. Lewis, indicação valiosa de Lord ASS. "Les Planches Courbes", ao que parece o livro mais recente do Yves Bonnefoy (ele nunca fez muito minha cabeça como poeta, mas esse volume é bonito). A putaria à romanesca do "Satyricon", do Petrônio, em edição bilíngüe. Uma tradução lusitana do século 19 para a "Eneida", do Virgílio. A versão do Bento Prado, o pai, para as "Odes e Epodos" do Horácio (os dois últimos livros integram a coleção da Martins Fontes a que aludi no item 4). De vez em quando, dou uma espiada nos "Doze Césares" do Suetônio, vertidos pelo Robert Graves. E leio, saltado e sem ordem, a obra completa do Jorge de Lima, em que há muita beleza: um dia vou terminar a "Invenção de Orfeu", tenho fé.
6. Que livros levarias para uma ilha deserta?
Mozart, sabiamente, diz que o melhor seria levar o manual do escoteiro-mirim. No meu caso, minha única (vaga) semelhança com são Jerônimo é a vontade de arrastar quase toda a biblioteca para o deserto -ou a ilha deserta. Sei que posso fazer 200 listas e não ficar satisfeito com nenhuma delas, mas a que me ocorre agora é a que segue: os Machados supracitados, do Brás Cubas para a frente. Alguns diálogos do Platão (restrito a um volume, ficaria com o meu que reúne o "Banquete" e a "Apologia de Sócrates"). Algumas coisas do velho Ari, sobretudo a "Poética" e a "Ética a Nicômacos". Traduções decentes da "Ilíada" e da "Odisséia" (a versão brasileira melhorzinha é a do Carlos Alberto Nunes, que deixa bastante a desejar; não se compara, por exemplo, à tradução do John Dryden para o primeiro livro da "Ilíada"). "The Complete Pelican Shakespeare", um volumão com todas as peças e poemas, mais ótimos textos introdutórios (epa, opa). A lírica do Camões. Os "Ensaios" do Montaigne, pai da matéria. Os "Pensamentos" do Pascal. Um Baudelaire que incluísse "As Flores do Mal", os "Pequenos Poemas em Prosa", a crítica de arte & literária e o bricabraque de "Mon Coeur Mis à Nu". Um Eliot no original, também com poesias e ensaios ("Notas para uma Definição de Cultura" e outros). Chesterton de montão, as histórias todas do Padre Brown e os ensaios ("Ortodoxia" etc.). Shaw também a granel, sobretudo as peças, como "Saint Joan" e aquele sublime terceiro ato de "Man and Superman", "Don Juan in Hell". Do Carpeaux, os "Ensaios Reunidos" e a "Nova História da Música". Tudo que eu puder ler de Ortega y Gasset. Todo o F'rnando P'ssoa, do sublime ao muito chato (sei lá, de repente me dá vontade de ler "Na Floresta do Alheamento"). "L'Allegria", do Ungaretti. Algumas coisas de Auden, Laforgue, Corbière, Valéry (deste, poemas e ensaios), Paul Celan. O par "Ficções" e "O Aleph", do Borges. Mais ensaios: Octavio Paz ("A Chama Dupla" e aquele sobre Sóror Juana Inés de la Cruz), Joseph Brodsky (o excepcional "Menos que Um") e a "História do Amor no Ocidente", do Denis de Rougemont. Faltaram romances, não? Os que me ocorrem: "O Leopardo", do Lampedusa, um volume com os dois do Radiguet ("Com o Diabo no Corpo" e "O Baile do Conde d'Orgel"), o "Pale Fire" do Nabokov. E quem sabe na ilha eu consiga enfim ler todo o "Ulysses", do irlandês maluco, com a ajuda do manual de instruções do Anthony Burgess ("Homem Comum Enfim"). E chega, que este deve ser o post mais longo que escrevi. (Há outra pergunta, mas a resposta é curtinha.)
7. Quatro pessoas a quem vais passar este testemunho e por quê?
Quero repassá-lo a quatro pessoas que, acredito, darão respostas interessantes e radicalmente diferentes: Sheila Leirner (Quando, Onde e Como), Pedro Sette Câmara (O Indivíduo), Marcos VP (Pirão Sem Dono) e o inimitável César Miranda (Pró Tensão), humorista cheio da Graça. A bola agora está com vocês, caros.
1. Não podendo sair do "Fahrenheit 451", que livro quererias ser?
Tem que ser um só? Por mim, eu seria a opera omnia do Machadão (que está na moda, o mundo aplaudiu, é um barato e um sucesso dentro e fora do Brasil). Sim, isso inclui aqueles romances da primeira fase, aqueles poemas parnasianos assim-assim, aquelas peças que ninguém lê e aquele montão de crônicas, sobretudo o artigo em que meu herói desce a ripa n'"O Primo Basílio" (o fato de que também gosto -e muito- do Eça notwithstanding). Se meu disco rígido não tiver memória suficiente, posso ser aqueles dois volumes de contos organizados pelo John Gledson para a Companhia das Letras, mais os romances de "Memórias Póstumas" em diante; forçado a escolher um só livro, é Brás Cubas na cabeça.
2. Já alguma vez ficaste perturbado/apanhado por uma personagem de ficção?
Sim, sem dúvida. Acho que o primeiro, quando eu era bem pequeno e estava começando a ler, foi a Alice do País das Maravilhas -não na tradução do livro de Lewis Carroll, mas na adaptação feita pelos estúdios Disney para o desenho animado, que ganhou uma versão em livro. Lembro que a Alice grandona, desproporcionalmente grande, era um pouco assustadora para mim. Bem mais tarde, já adulto, os personagens que mais me impressionaram foram basicamente dramatúrgicos. Menciono dois deles por razões quase opostas: a Antígona do Sófocles - com tudo o que a personagem diz sobre nobreza, honra, sacrifício- e, na vasta galeria dos shakespearianos, sir John Falstaff, aquele bufão que no fundo é também nobre, generoso. Próximo de nós, mas muito maior que nós, larger than life -e que triste é a cena de sua rejeição pelo príncipe Hal, depois rei Henrique V, no final de "Henrique IV". Dos mais modernos, cito a Joana D'Arc do Shaw, a um só tempo ingênua, irônica, insolente e obstinada (hum, essa frase merece um "ai, Creuza"); e Thomas Stockmann, o "inimigo do povo" de Ibsen. Nunca engoli o final dessa peça, forçadamente otimista: mas o "homem que mais pode porque está mais só" é, para mim, uma idéia fundamental que funciona como personagem.
3. O último livro que compraste?
Foram dois: "O Homem e a Gente", do Ortega y Gasset, e os "Collected Shorter Poems, 1927-1957", do Auden.
4. Os últimos livros que leste?
Bom, convém dizer, como preâmbulo, que minhas leituras são bastante caóticas: vários livros ao mesmo tempo, uns lidos ou relidos, outros apenas começados, alguns quase-terminados. Começo a lista com releituras: por ocasião da morte de Saul Bellow, revi o romance "Mr. Sammler's Planet" e muitos dos ensaios de "Tudo Faz Sentido" (até onde sei, há edição brasileira apenas do segundo). Bellow era muito bom, como ficcionista e como ensaísta. E reli "O Castelo de Axel", do Edmund Wilson, que ficou muito tempo fora de catálogo e foi relançado no ano passado ou neste. Fora esses, uma compilação de entrevistas de Vladimir Nabokov, "Strong Opinions"; a capa da minha edição é horrenda, mas o conteúdo compensa, porque Nabokov era sempre um ótimo entrevistado. "On the Pleasure of Hating", pequena coletânea de artigos do William Hazlitt. Três peças do Noël Coward num só volume, "Blithe Spirit", "Hay Fever" e "Private Lives" (gosto mais da primeira). "A Descoberta do Outro", do Gustavo Corção (menos interessante quando ele se põe a pregar, bem mais quando exercita aquele humor machadiano). "Poetas Franceses da Renascença", breve antologia traduzida por Mário Laranjeira e publicada numa coleção de clássicos da Martins Fontes. "Parte Alguma", o novo volume de poesias do Nelson Ascher. E a edição brasileira das poesias do T.S. Eliot, na péssima tradução daquele senhor que é presidente da ABL. Ah! Mais dois de leitura leve-e-agradável: "A Vida como Performance", perfis feitos pelo crítico teatral tarado Kenneth Tynan (a babação às vezes incomoda, mas há muita coisa boa, sobretudo o longo perfil de Louise Brooks), e a compilação das críticas do cinéfilo Moniz Vianna, "Um Filme por Dia". A última é ainda melhor se você tiver ao lado uma coleção de DVDs.
5. Que livros estás a ler?
Além dos que eu acabei de comprar (vide item 3) e da mesma maneira caótica: "Os Prazeres e os Dias", do Proust. Uma coletânea de contos do Maupassant (não essa tradução recém-lançada, mas uma mais antiga, feita pelo Mário Quintana). "The Secret Agent", do Joseph Conrad. "An Experiment in Criticism", do C. S. Lewis, indicação valiosa de Lord ASS. "Les Planches Courbes", ao que parece o livro mais recente do Yves Bonnefoy (ele nunca fez muito minha cabeça como poeta, mas esse volume é bonito). A putaria à romanesca do "Satyricon", do Petrônio, em edição bilíngüe. Uma tradução lusitana do século 19 para a "Eneida", do Virgílio. A versão do Bento Prado, o pai, para as "Odes e Epodos" do Horácio (os dois últimos livros integram a coleção da Martins Fontes a que aludi no item 4). De vez em quando, dou uma espiada nos "Doze Césares" do Suetônio, vertidos pelo Robert Graves. E leio, saltado e sem ordem, a obra completa do Jorge de Lima, em que há muita beleza: um dia vou terminar a "Invenção de Orfeu", tenho fé.
6. Que livros levarias para uma ilha deserta?
Mozart, sabiamente, diz que o melhor seria levar o manual do escoteiro-mirim. No meu caso, minha única (vaga) semelhança com são Jerônimo é a vontade de arrastar quase toda a biblioteca para o deserto -ou a ilha deserta. Sei que posso fazer 200 listas e não ficar satisfeito com nenhuma delas, mas a que me ocorre agora é a que segue: os Machados supracitados, do Brás Cubas para a frente. Alguns diálogos do Platão (restrito a um volume, ficaria com o meu que reúne o "Banquete" e a "Apologia de Sócrates"). Algumas coisas do velho Ari, sobretudo a "Poética" e a "Ética a Nicômacos". Traduções decentes da "Ilíada" e da "Odisséia" (a versão brasileira melhorzinha é a do Carlos Alberto Nunes, que deixa bastante a desejar; não se compara, por exemplo, à tradução do John Dryden para o primeiro livro da "Ilíada"). "The Complete Pelican Shakespeare", um volumão com todas as peças e poemas, mais ótimos textos introdutórios (epa, opa). A lírica do Camões. Os "Ensaios" do Montaigne, pai da matéria. Os "Pensamentos" do Pascal. Um Baudelaire que incluísse "As Flores do Mal", os "Pequenos Poemas em Prosa", a crítica de arte & literária e o bricabraque de "Mon Coeur Mis à Nu". Um Eliot no original, também com poesias e ensaios ("Notas para uma Definição de Cultura" e outros). Chesterton de montão, as histórias todas do Padre Brown e os ensaios ("Ortodoxia" etc.). Shaw também a granel, sobretudo as peças, como "Saint Joan" e aquele sublime terceiro ato de "Man and Superman", "Don Juan in Hell". Do Carpeaux, os "Ensaios Reunidos" e a "Nova História da Música". Tudo que eu puder ler de Ortega y Gasset. Todo o F'rnando P'ssoa, do sublime ao muito chato (sei lá, de repente me dá vontade de ler "Na Floresta do Alheamento"). "L'Allegria", do Ungaretti. Algumas coisas de Auden, Laforgue, Corbière, Valéry (deste, poemas e ensaios), Paul Celan. O par "Ficções" e "O Aleph", do Borges. Mais ensaios: Octavio Paz ("A Chama Dupla" e aquele sobre Sóror Juana Inés de la Cruz), Joseph Brodsky (o excepcional "Menos que Um") e a "História do Amor no Ocidente", do Denis de Rougemont. Faltaram romances, não? Os que me ocorrem: "O Leopardo", do Lampedusa, um volume com os dois do Radiguet ("Com o Diabo no Corpo" e "O Baile do Conde d'Orgel"), o "Pale Fire" do Nabokov. E quem sabe na ilha eu consiga enfim ler todo o "Ulysses", do irlandês maluco, com a ajuda do manual de instruções do Anthony Burgess ("Homem Comum Enfim"). E chega, que este deve ser o post mais longo que escrevi. (Há outra pergunta, mas a resposta é curtinha.)
7. Quatro pessoas a quem vais passar este testemunho e por quê?
Quero repassá-lo a quatro pessoas que, acredito, darão respostas interessantes e radicalmente diferentes: Sheila Leirner (Quando, Onde e Como), Pedro Sette Câmara (O Indivíduo), Marcos VP (Pirão Sem Dono) e o inimitável César Miranda (Pró Tensão), humorista cheio da Graça. A bola agora está com vocês, caros.
5.5.05
O clube dos vinte e cinco
"Uma galerinha da pesada, que vai sacudir o pedaço e se meter em mil confusões." Pois é, cheguei à conclusão de que somos uma chamada da "Sessão da Tarde". Não admira que nossos leitores chiques suspirem e digam, naquele tom entre o blasé e o anasalado: "Ai, como vocês são previsíveis". Leitor chiquérrimo, dahling, veja: não trabalho para você de graça. Quer novidade, é cem real mais o dinheiro do busão. Quando me pagarem bem, prometo me esforçar para changer tout e ser interessantemente imprevisível. Se bobear, faço até o bedel comer o cu de Ferris.
4.5.05
Grandes homens cometem grandes erros
Releio "Uma Nova História da Música", livraço -embora fisicamente pequeno- do legítimo encyclopaedia man, Otto Maria Carpeaux. Na edição que tenho em mãos, ele inventa uma personagem chamada "condessa Susanna" para "As Bodas de Fígaro", de Mozart; pode ser que, como um moderno diretor de tchiatro, ele tenha achado melhor fundir as duas personagens. Mais para a frente, ele classifica a "Novo Mundo" como quinta sinfonia do Dvorák; era, na verdade, a nona (não a avó do Dvorák, bien sûr. Aliás, sempre me intrigou a obsessão dos compositores de sinfonias com o número nove -se houver algum pitagórico me lendo, por favor, explique). Não longe, na minha estante, está "O Livro dos Insultos", do velho batuta H.L. Mencken. Paulo Francis, ao escrever a orelha da edição brasileira, afirmou que Mencken chamava o sul dos Euá de "Saara do Bozart", "trocadilho de bobo com Mozart". Em inglês e mesmo em português, não faz sentido, certo? Nem é para fazer: páginas adiante, o tradutor e prefaciador, Ruy Castro, esclarece que os sulistas viviam no Sahara of the Bozarts porque, para Mencken, o sul era um deserto no que dizia respeito às beaux-arts, belas-artes.
Gentes imbecis, como as que abundam na Botocúndia, tentariam desqualificar Carpeaux e Francis por causa desse tipo de erro (no caso do segundo, fui testemunha de que tentaram). Para mim, é natural que, com tanta informação na cabeça desses dois, alguns fios acabassem se misturando e dando curto-circuito -e, não raro, havia beleza no incêndio resultante. E saber que gênios também erram é um grande consolo para a nossa mediocridade. Quem sabe até uma esperança de perdão para os enforcadores de Cristo.
Gentes imbecis, como as que abundam na Botocúndia, tentariam desqualificar Carpeaux e Francis por causa desse tipo de erro (no caso do segundo, fui testemunha de que tentaram). Para mim, é natural que, com tanta informação na cabeça desses dois, alguns fios acabassem se misturando e dando curto-circuito -e, não raro, havia beleza no incêndio resultante. E saber que gênios também erram é um grande consolo para a nossa mediocridade. Quem sabe até uma esperança de perdão para os enforcadores de Cristo.
3.5.05
Ray Davies e o futuro do pretérito
Soa filisteu se eu disser que os Kinks tornaram mais claras para mim duas ou três coisas sobre arte? Claro que sim. Sobretudo aqui no Bananão, terra de samba e pandeiro, onde lorpas e pascácios ensinam que Baiano Meloso é poeta e asseguram que blogue é algo relevante (amiguinho blogueiro, se você pensa assim, acredite: não é. Os melhores blogues são deliciosamente irrelevantes; os mais sérios podem, no máximo, apontar -e apontam- para o que é relevante. Sempre há, porém, aqueles que ficam olhando para o dedo). Não estou dizendo que Ray Davies, principal e quase-único compositor da banda, seja Wordsworth; fui alfabetizado, percebo a diferença. Mas, se nos restringirmos ao pequeno mundo que é o roque, ele tem méritos suficientes para ser poet laureate, na definição do velho-quebrador-de-guitarra Pete Townshend.
As melhores letras de Ray Davies são, sem dúvida, witty. É um dos pouquíssimos roqueiros que poderia usar o chapéu de Noël Coward sem grande desconforto. Mas é raro que, nelas, um verso brilhe por si só, destacado do resto -menos "poeta" do que "contista", quem sabe. O que Davies faz bem, entre outras coisas, é explorar a diferença entre a coisa dita, o modo como é dita e mesmo o contexto em que ela é enunciada (ironia, direis; certo, mas não só). Ele pertence, portanto, ao time dos compositores que precisam, de fato, ser ouvidos: quem só lê as coisas ditas perde pelo menos metade da história, não raro a melhor metade.
Pegue "Supersonic Rocket Ship", faixa do álbum "Everybody's in Show Biz", de 1972. Você, leitor esperto, sabe que naquela época o Grande Tédio de Existir ainda não estendera sua sombra às viagens espaciais, então tema recorrente dessa contradição-em-termos que é a "cultura pop". Àquela altura, um David Bowie, por exemplo, devia todos os seus sucessos a space oddities, alienígenas e que tais. Havia nisso uma idéia de modernidade -faute de mieux- que parecia combinar com a imagem de si mesmo que o roquenrol se empenha em vender. Sem ouvi-la e a julgar pelo título, era lícito pensar que "Supersonic Rocket Ship" fosse uma música agressiva, "moderna", talvez com barulhinho de foguetes em decolagem.
Em vez disso, Davies fez seus ouvintes aterrissarem nos anos 30. A canção soa como peça extraviada de um vaudeville, e ele canta com um certo sotaque cockney, zombeteiro. É como o mestre-de-cerimônias de um circo ou um camelô cuja barraquinha oferecesse viagens espaciais a preços módicos. Quem o ouve não pensa na nave de Armstrong e Aldrin, mas num dos engenhos, ainda mais antigos, daquele filme de Georges Méliès. Falso, portanto: deliberadamente anacrônico, incapaz de levar alguém além dos subúrbios de Londres, quanto mais ao espaço. Fantástico no sentido etimológico do termo, de inexistente ou irrealizável.
E, ora, não é mais interessante se deixar enganar? A viagem de foguete proposta pelo camelô contém todas as possibilidades. Não precisa prestar contas à realidade, à aridez do pouso verdadeiro na Lua, à mediocridade da geopolítica, à sem-gracice absoluta daquelas pedrinhas repletas de interesse científico. A viagem espacial de "Supersonic Rocket Ship", de volta para o passado e esvaziada de "verdade", é atraente porque é impossível. Quem olha com cuidado esse pequeno espelho vê o que se deve esperar da grande arte: mentiras bem contadas, moeda falsa mais valiosa -capaz de adquirir mais e melhores bens- do que a verdadeira. Serei sempre grato a mr. Davies por não me deixar esquecer disso.
(Para ouvir a música, clique na nota aí embaixo.)
As melhores letras de Ray Davies são, sem dúvida, witty. É um dos pouquíssimos roqueiros que poderia usar o chapéu de Noël Coward sem grande desconforto. Mas é raro que, nelas, um verso brilhe por si só, destacado do resto -menos "poeta" do que "contista", quem sabe. O que Davies faz bem, entre outras coisas, é explorar a diferença entre a coisa dita, o modo como é dita e mesmo o contexto em que ela é enunciada (ironia, direis; certo, mas não só). Ele pertence, portanto, ao time dos compositores que precisam, de fato, ser ouvidos: quem só lê as coisas ditas perde pelo menos metade da história, não raro a melhor metade.
Pegue "Supersonic Rocket Ship", faixa do álbum "Everybody's in Show Biz", de 1972. Você, leitor esperto, sabe que naquela época o Grande Tédio de Existir ainda não estendera sua sombra às viagens espaciais, então tema recorrente dessa contradição-em-termos que é a "cultura pop". Àquela altura, um David Bowie, por exemplo, devia todos os seus sucessos a space oddities, alienígenas e que tais. Havia nisso uma idéia de modernidade -faute de mieux- que parecia combinar com a imagem de si mesmo que o roquenrol se empenha em vender. Sem ouvi-la e a julgar pelo título, era lícito pensar que "Supersonic Rocket Ship" fosse uma música agressiva, "moderna", talvez com barulhinho de foguetes em decolagem.
Em vez disso, Davies fez seus ouvintes aterrissarem nos anos 30. A canção soa como peça extraviada de um vaudeville, e ele canta com um certo sotaque cockney, zombeteiro. É como o mestre-de-cerimônias de um circo ou um camelô cuja barraquinha oferecesse viagens espaciais a preços módicos. Quem o ouve não pensa na nave de Armstrong e Aldrin, mas num dos engenhos, ainda mais antigos, daquele filme de Georges Méliès. Falso, portanto: deliberadamente anacrônico, incapaz de levar alguém além dos subúrbios de Londres, quanto mais ao espaço. Fantástico no sentido etimológico do termo, de inexistente ou irrealizável.
E, ora, não é mais interessante se deixar enganar? A viagem de foguete proposta pelo camelô contém todas as possibilidades. Não precisa prestar contas à realidade, à aridez do pouso verdadeiro na Lua, à mediocridade da geopolítica, à sem-gracice absoluta daquelas pedrinhas repletas de interesse científico. A viagem espacial de "Supersonic Rocket Ship", de volta para o passado e esvaziada de "verdade", é atraente porque é impossível. Quem olha com cuidado esse pequeno espelho vê o que se deve esperar da grande arte: mentiras bem contadas, moeda falsa mais valiosa -capaz de adquirir mais e melhores bens- do que a verdadeira. Serei sempre grato a mr. Davies por não me deixar esquecer disso.
(Para ouvir a música, clique na nota aí embaixo.)